Os grafites no bairro Parque Cocaia, no distrito do Grajaú, extremo Sul de São Paulo, revelam em muros, esquinas e portões o potencial artístico da região, lar de milhares de jovens cada vez mais engajados em deixar uma marca positiva onde vivem. Dessa inquietação nascem os coletivos sociais, que abordam desde questões socioambientais e ecológicas, até arte-educação e também empreendedorismo. Sempre pautados pela parceria em prol do desenvolvimento local, esse movimento cria um terreno fértil para a implementação de negócios de impacto ou até mesmo o surgimento deles dentro da própria comunidade.
 

“A gente se nomeia como negócio de impacto social juvenil, por trazer essas linguagens artísticas que estão no momento do jovem, como o grafite, a música e o audiovisual”. É assim que Tiago Moraes Silva Santos, o Tigone, de 27 anos, define o público-alvo do Salve Selva, coletivo que desde 2011 atua no distrito do Grajaú, também no extremo Sul de São Paulo, com diversas ações, projetos e oficinas dentro de uma proposta de arte-educação. O grupo é formado por Tigone, Adriano Figueiredo, Gelson Salvador, Harry Borges e William “Mangraff”, todos artistas visuais, que se conheceram nas vivências culturais da comunidade. O coletivo foi fundado quando perceberam que podiam transformar a arte que faziam com os grafites em produtos. Tigone, que desde os seis anos ajudava os pais a confeccionarem bolsas, veio com a ideia de criar bags grafitadas.

Gif do Salve Selva. Trabalho de Adriano Figueiredo. Fonte: Instagram Salve Selva. Produção do gif: Aupa.

A decisão, tomada na época em que as ecobags eram uma novidade, foi um sucesso: “As pessoas começaram a encomendar e a curtir nosso trabalho. Ganhamos visibilidade e passamos a investir em outras coisas, como camisetas, roupas personalizadas e blusas”, relembra Tigone. 

Paralelamente, o coletivo investe muito dos seus esforços na elaboração de oficinas, vivências, projetos sociais e produção cultural, e, em 2018, resolveu abrir um estúdio para centralizar as produções artísticas, audiovisuais e musicais. Como a venda de serviços educacionais é itinerante, quando não há projetos, o coletivo funciona como um negócio de produção artística. Em todas as frentes, o intuito é de envolver a comunidade na cadeia produtiva: por exemplo, são as costureiras da região que confeccionam os produtos.

Foi a partir desse propósito de uma economia solidária que Lorena Carvalho, 27, e Bárbara Terra, 28, criaram o coletivo Rede Nóis por Nóis, que ano após ano tem evidenciado o grande potencial empreendedor da quebrada, com a organização de feiras e festivais, além de oficinas e outras atividades. A ideia começou a tomar forma em 2012, após participarem de um fórum cultural que contou com a presença de Maria Vilani, que dispensa apresentações dentro do Grajaú: poeta, professora, ativista cultural, fundadora de vários espaços artísticos no distrito e também mãe do rapper Criolo. “Foi com ela que a gente entendeu essa sacada do que é ser ‘nóis por nóis”, conta Lorena, que é articuladora cultural, produtora e mãe de uma menina. A dupla, que já possuía uma influência com os moradores do distrito e frequentemente era acionada para ajudar em diversas questões, percebeu que poderia transformar isso em um movimento maior.
 
Em 2016, nascia o coletivo, e junto com ele as feiras e festivais que se tornaram conhecidos na região. A proposta era fazer um evento para cada estação do ano, no intuito de que não se restringisse a venda de produtos e feira gastronômica, e também ajudasse a conscientizar os participantes para questões ambientais. O primeiro desses eventos, voltado para um perfil mais artístico, contou com modestos oito empreendedores. Em 2018 e 2019, o Nóis por Nóis foi responsável por organizar a feira do Festival Redbull Amaphiko, que reuniu 171 empreendedores em 20 barracas e, segundo Lorena, 80% de todos os produtos foram vendidos.
Tigone,
do Salve Selva.
Lorena Carvalho,
do Nóis por Nóis.
Maria Vilani,
poeta, ativista cultural e professora.
Lorena Carvalho e Bárbara Terra,
do Nóis por Nóis.
Arte do Salve Selva.
Mauro Neri,
Grafiteiro, artista plástico e idealizador do Imargem.
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A rede de ajuda e os impactos na comunidade 
Organizações sociais, coletivos e comércios se misturam em uma rede colaborativa que movimenta a cena cultural, gastronômica e empreendedora no Grajaú e seus arredores. A aproximação do Nóis por Nóis com a Redbull, por exemplo, aconteceu por intermédio de Leandro Sequelle, produtor independente da região e que também foi um dos curadores dos festivais. Leandro é criador da Graja Beer, que surgiu como marca em 2018 e deu origem a um bar em 2019. A proposta é trazer a cerveja artesanal para a realidade da periferia e fortalecer o ecossistema financeiro ao propor uma opção de qualidade, seguindo o lema “beba menos, beba melhor”. Situado nas proximidades da estação de metrô Interlagos, o pub do Graja Beer conta com rótulos feitos por artistas da região e também sedia eventos como o ocorrido no último dia 18 de janeiro. Na ocasião, foi realizado o lançamento de uma história em quadrinhos (Kauira Dorme), produzida por dois artistas de periferias da zona Sul (Jardim Marilda, no Grajaú, e Jardim Iporanga), com direito à roda de conversa sobre vocação na comunidade – tema abordado no enredo da HQ.
 
Um resultado expressivo da força dessa colaboração é a Unigraja, a Universidade Livre do Grajaú, que é gerida atualmente por oito coletivos: Agência Cresci, Cooperpac, Ecoativa, Graja na Cena, Imargem, Meninos da Billings, Periferia em Movimento e Salve Selva. Criada em 2018, com patrocínio da Fundação Via Varejo pelo projeto Casas Bahia na Comunidade, a universidade vai para o terceiro ano de existência, impactando positivamente a vida dos jovens do distrito.
 
Diferentemente de uma universidade tradicional, com foco no acadêmico, a Unigraja trabalha com uma metodologia de vivências educacionais artísticas e socioambientais. Oficinas de artes visuais, quadrinhos, experiências ecológicas na represa Billings, vivências de permacultura, gestão cultural e empreendedorismo são algumas das atividades oferecidas. O resultado é que os participantes se conectam com a história, as necessidades e também as riquezas do distrito, dono de um centro cultural, uma represa, parques municipal e estadual, e até uma ilha (Bororé). Ao entender o potencial da quebrada e saírem capacitados pelas formações oferecidas, os jovens terminam a participação com a possibilidade de buscar um caminho de protagonismo dentro do próprio distrito.
Atividade da UNIGRAJA. Fonte: unigraja.com.
Da expansão demográfica ao “Grajauex” 
Pertencente à subprefeitura da Capela do Socorro e mais populoso dentre os 96 distritos de São Paulo, com 360 mil habitantes segundo dados do IBGE de 2010 (e estimativas populares de mais de 500 mil atualmente), o Grajaú surgiu entre as décadas de 1950 e 1960. Naquela época, a capital – assim como todo o estado – passava por um grande processo de expansão industrial e, em apenas duas décadas, de 1960 a 1980, a região da Capela do Socorro passou de 30 mil habitantes a mais de 260 mil. O crescimento desenfreado, causado por diversos fatores como a proximidade com o polo industrial de Santo Amaro, a falta de políticas habitacionais e a pouca fiscalização, contou com o surgimento de vários loteamentos clandestinos e favelas – dados da Prefeitura estimam 220 favelas na região.
 
A dificuldade na relação do distrito com o poder público motivou a criação de associações de bairro e movimentos reivindicativos nas décadas de 1970 e 1980, nas lutas por direitos básicos como água, transporte, regularização de terrenos e habitações. A luta por melhorias e também por mais segurança persiste até os dias atuais, porém é crescente o número de iniciativas e coletivos voltados para o potencial artístico da região.
 
Criado em 2006, o coletivo Imargem se tornou grande referência nessa questão, através de intervenções artísticas que buscam instigar um olhar voltado para a arte, meio ambiente e questionamentos sociais. Para Mauro Neri, 39, grafiteiro, artista plástico e idealizador do Imargem, a característica peninsular do Grajaú, que fica entre as represas Billings e Guarapiranga, afastou um pouco o distrito do diálogo com o centro, mas ajudou os bairros a criarem uma identidade própria. Mauro afirma que esse movimento ativo, empreendedor, artístico e social sempre existiu na comunidade, mas que a internet, as redes sociais e principalmente o sucesso do rapper Criolo trouxeram mais atenção à região.
 
Tigone – que também é músico e membro do Graja Groove – concorda que isso mudou a autoestima do distrito: “Antigamente as pessoas tinham vergonha, eram do Grajaú e falavam que moravam em Interlagos. Tinham receio de que não iriam ser contratadas. Agora já vi gente de Interlagos dizendo que é do Grajaú”. Criolo, que não esconde a questão da segurança no distrito no refrão de “Grajauex” – “The Grajauex, duas laje é triplex, no morro os moleques, o vapor”, frase seguida do som de uma arma sendo engatilhada – diz na mesma música diz que a “zona Sul é um universo”. E, de fato, são mais de 90 bairros só no distrito, cada um com suas próprias particularidades e potências.

O impacto se faz presente. E os negócios?  
Na avaliação de Lorena, o Nóis por Nóis é um negócio de impacto em formação. Se no início ela e Bárbara tiravam do próprio bolso para fazer acontecer, atualmente o coletivo está em franco desenvolvimento. Em agosto de 2019, elas e outros cinco coletivos de outras periferias da cidade venceram o edital do projeto Elas Periféricas, da Fundação Tide Setúbal, e receberam investimento para expandirem suas atividades. A partir desse aporte, elas pretendem desenvolver a área de comunicação (o ComSoma) e a produção audiovisual do grupo. A ideia é não se restringir a organizar feiras e criar um espaço de diálogo para ouvir o que os empreendedores, artistas e pessoas influentes da região têm a dizer, para que possam continuar a somar na vida de quem está participando. As redes sociais do grupo também devem ganhar uma atenção especial com mais vídeos próprios e postagens.
 
A compreensão do funcionamento de um negócio de impacto veio após a participação no programa AMEI (Aceleração de Mulheres Empreendedoras de Impacto), realizado pelo Empreende Aí e Yunus Negócios Sociais. Planejamento estratégico, gestão financeira, e uma busca maior por parcerias foram aprendizados que Lorena já começou a aplicar no fim do ano passado, quando fechou a primera parceria com o Sesc Interlagos para sediar um evento do ComSoma. Para esse ano, o foco será no planejamento estratégico. “Esse primeiro semestre vamos continuar com as oficinas, com uma pegada voltada para estações do ano – verão sustentável, por exemplo. E vamos fazer um festival só esse ano. Antigamente, fazíamos quatro, mas vamos diminuir para poder trabalhar com parcerias para as feiras, como Sesc, casas culturais, e levar o trabalho também para outras periferias”, explica Lorena.
 
Para Tigone, o Salve Selva é um negócio “autossustentável resistente”, ainda que não possui indicadores para medir o impacto. O coletivo também busca expandir suas atividades para outros centros e investirá em uma kombi itinerante e um estúdio de tatuagem. Sobre a importância em pensar o trabalho do coletivo também como um negócio, Tigone relata que tiveram que superar uma desconfiança inicial. “A gente via esses processos de aceleração, startups, como algo muito competitivo”. Porém, após boas experiências e perceber que poderiam manter a mentalidade de parcerias ao mesmo tempo em que empreendiam, o grupo entendeu que poderia seguir nesse caminho sem perder a essência. “Tem que guardar nota, fazer planilha, conversar com parceiros, sair da caixinha”, conta Tigone, que também valoriza a importância de trocar experiências com quem está a mais tempo nessa caminhada: “O DJ Bola mesmo foi uma pessoa que passou muito conhecimento pra gente”.
 
 
Terreno fértil
Se os negócios de impacto ainda parecem dar seus primeiros passos mais firmes no Grajaú, o movimento conjunto de coletivos, associações e também pequenos empreendimentos em prol do desenvolvimento do distrito formam um terreno cada vez mais fértil para esse tipo de empreitada.
 
Só que, para isso acontecer, o diálogo com a comunidade precisa ser estreitado e a história e a identidade da região, respeitadas. “Já tivemos muita promessa, muitas pessoas que pegaram dados e nada. Há muitos anos isso acontece com a periferia”, relata Tigone, que emenda que não adianta olharem para a região apenas com interesse comercial, pois

“Se não vier para aprender, entender que as coisas funcionam a partir de demandas, aí não há impacto nenhum”.

1 comentário

  1. Matéria excelente, bom conteúdo e informações a respeito do bairro, comunidade e seus projetos. Parabéns !!

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