Em 2020, aos 30 anos, a cientista Jaqueline Goes de Jesus ficou conhecida após ser a responsável por coordenar a equipe que sequenciou, em 48 horas, o genoma do SARS-CoV-2 no início da pandemia no Brasil.
Laureada com o Prêmio Capes de Teses (2020), Jaqueline mantém uma rotina intensa de trabalho na linha de frente para o enfrentamento da Covid-19. E, além disso, encontra tempo para ajudar a popularizar a pesquisa científica por meio de entrevistas e das suas redes sociais. Com mais de 160 mil seguidores no Instagram e outros 15 mil no TikTok, ela produz e publica vídeos educativos.
Soteropolitana de nascimento, Jaqueline graduou-se em Biomedicina pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, é mestre em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa pelo Instituto de Pesquisas Gonçalo Moniz – Fundação Oswaldo Cruz e doutora em Patologia Humana e Experimental pela Universidade Federal da Bahia.
Integrante do ZIBRA Consortium e do ZIBRA Project – Zika in Brazil Real Time Analisys, projeto itinerante de mapeamento genômico do vírus Zika no Brasil, ela realizou estágio de doutoramento sanduíche na Universidade de Birmingham (Inglaterra), desenvolvendo e aprimorando protocolos de sequenciamento de genomas completos pela tecnologia de nanoporos dos vírus Zika, HIV, além de protocolos para sequenciamento direto do RNA.
Como bolsista FAPESP, em nível de pós-doutorado, atua no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo – Universidade de São Paulo, no âmbito do CADDE – Brazil-UK Centre for Arbovirus Discovery, Diagnosis, Genomics and Epidemiology.
Em entrevista à Aupa, Jaqueline falou sobre sua trajetória pessoal e profissional e as dificuldades que os pesquisadores brasileiros têm encontrado, bem como o papel do Sistema Único de Saúde e o futuro do Brasil, diante de um cenário político, social e econômico tão desafiador.
AUPA – Quais incentivos você recebeu, durante sua trajetória, para dedicar-se à pesquisa científica?
Jaqueline Goes de Jesus – Recebi incentivos de várias fontes. Os meus pais foram minha fonte primária, desde a base do Ensino Fundamental até o Ensino Médio e posteriormente. Eles me incentivaram a estudar em uma escola técnica, que, embora gratuita, exige recursos do aluno para acompanhar o curso; incentivaram que eu estudasse uma segunda língua e, quando eu entrei na Graduação, foi devido a recursos deles, que pagaram todas as mensalidades. Minha mãe sempre me disse para não desistir, mesmo diante das dificuldades na Faculdade e nos grupos de estudo. Durante o Mestrado, o Doutorado e também no Pós-Doutorado pude contar com uma série de incentivos, que foram importantes tanto financeiramente quanto emocional e moralmente. Tive apoio das agências de fomento, como a FAPESP e a CAPES, tanto no Mestrado como no Doutorado, inclusive para o estádio de Doutorado Sanduíche.
Destaco também duas pesquisadoras: Marilda Gonçalves (diretora da Fiocruz Bahia), que me acolheu num dos momentos mais difíceis na realização do projeto do Doutorado e, atualmente, contei com Valéria Borges (pesquisadora e docente da Universidade Federal da Bahia), que me incentivou a participar da concorrência das premiações. Sem ela eu nem teria concorrido.
AUPA – Comente sobre os cortes nas bolsas de fomento para pesquisa realizados, sobretudo, pelo Governo Federal, bem como as demais agências de incentivo à pesquisa no Brasil?
Jaqueline Goes de Jesus – Vejo o corte de bolsas do Governo Federal como um ataque à Ciência e à toda a produtividade que tem acontecido. Esses cortes baseados em ideologias que não existem em relação às universidades federais, bem como declarações sobre balbúrdia ou de que os pesquisadores aproveitam-se indevidamente das bolsas, são absurdos. O que vivemos durante a pandemia é reflexo desses cortes, pois quando são cortadas as bolsas, retira-se o benefício recebido pelo trabalho dos estudantes e são eles que fazem as pesquisas acontecerem. São os estudantes de Iniciação Científica, Mestrandos e Doutorandos que fazem as pesquisas serem, de fato, efetivas no Brasil.
Corta-se não só o sustento do pesquisador, mas uma trajetória de conhecimento científico que ainda não está completa e que daria muitos frutos se o investimento fosse continuado.
AUPA – Como você vê a atuação de mulheres líderes na Ciência hoje?
Jaqueline Goes de Jesus – Vejo a atuação de mulheres na Ciência como um grande passo para que tenhamos cada vez mais ações voltadas ao público feminino nessa área. Ter mulheres em posições de decisão nos ajuda a pensar medidas, programas, incentivos voltados para mulheres, porque são realizados pela ótica feminina. Isso é importantíssimo para que a equidade de gênero seja estabelecida cada vez mais rápido e, mais do que isso, para que exista qualidade de vida e melhores condições de trabalho para todas as mulheres.
AUPA – O Instituto Butantan tem 71% de seu corpo científico formado por mulheres. Acredita que esse fato foi importante na corrida para a produção da vacina contra a Covid-19?
Jaqueline Goes de Jesus – Eu acredito que o papel da mulher na Ciência é muito importante, mas não colocaria o peso ou o mérito nas mulheres para que a vacina ficasse pronta. O Instituto Butantan tem uma história de louvor em relação à produção de vacinas, tem um know-how que talvez nenhum instituto brasileiro tenha. É um destaque na produção de vacinas e, apesar da presença de tantas mulheres na atuação direta – sem dúvida, isso é muito louvável e foi um diferencial para esse momento de pandemia – tem muita experiência e, acredito que teríamos uma produção de vacinas igualmente efetiva, mesmo sem esse percentual tão significativo.
AUPA – Na sociedade, de modo geral, atribui-se ao cientista o estereótipo do homem branco e bem-sucedido. Acredita que precisamos falar mais sobre representatividade?
Jaqueline Goes de Jesus – Sim, precisamos falar sobre representatividade. Esse estereótipo não acontece somente no Brasil, mas em todo o mundo. A imagem do cientista homem e bem-sucedido está nos livros e filmes e permeia nosso imaginário desde crianças. Precisamos, sim, falar sobre representatividade feminina negra, porque existem, ainda que poucas, muitas mulheres produzindo conteúdos importantíssimos para a Ciência e essas mulheres não têm os holofotes da mídia, como aconteceu comigo. Eu trabalho como pesquisadora há mais de 11 anos e só neste último ano tive o reconhecimento do meu trabalho. Há muitas mulheres trabalhando para trazer progresso para o Brasil que não são notadas, nem reconhecidas. A mídia exerce um papel importantíssimo para que as mulheres possam ser conhecidas, apoiadas e valorizadas pela sociedade.
AUPA – Quais as principais dificuldades de um cientista na linha de frente durante a pandemia provocada pela Covid-19?
Jaqueline Goes de Jesus – As principais dificuldades são a falta de estrutura laboratorial para trabalhar e a falta de investimentos na Ciência. Obviamente, há vários desdobramentos, sendo o principal deles a estrutura, ou seja, a questão logística de aprovisionamento de insumos para o trabalho em si. Durante a pandemia, tivemos muita dificuldade para obter alguns reagentes que são importantíssimos para a pesquisa, a realização dos experimentos e a produção científica. Não haver um fluxo de importação e liberação dos materiais e reagentes necessários para a realização dos testes e do sequenciamento tem atrapalhado bastante nossa rotina. Este cenário é vivido há muito tempo e se evidenciou ainda mais durante a pandemia. Além disso, é muito complicado trabalhar diariamente enfrentando comentários, medidas e eventos contrários à atuação do cientista.
O negacionismo é um desafio que se intensificou a partir de 2019, incentivado pelos nossos governantes. A população acaba influenciada por declarações, pelo comportamento dos líderes e isso tem atrapalhado nosso trabalho.
É importante lembrar que o comportamento da população em relação à Covid-19 impacta diretamente a quantidade de trabalho que desenvolvemos e impacta o esforço que é preciso para compreender e mitigar o que acontece em relação ao novo Coronavírus no Brasil e no mundo. O exemplo mais evidente disso são as novas variantes do vírus que estão se dispersando numa velocidade muito maior do que conseguimos rastrear e prevenir. O mesmo acontece em relação às vacinas, cuja velocidade de imunização das pessoas é muito aquém daquela com a qual o vírus se dispersa, sobretudo devido às novas variantes que surgiram a partir do comportamento populacional, da alta taxa de transmissão e, por consequência, do acúmulo de muitas mutações.
AUPA – Vimos que, para o desenvolvimento da vacina, as inovações sociais foram um diferencial. Como percebe a efetividade destes avanços?
Jaqueline Goes de Jesus – Não acho que chegamos a um nível de inovação social que cause impacto na área da saúde. A inovação existe, sim, mas ainda está muito aquém do que deveria ser para trazer benefícios no desenvolvimento de medicamentos e da própria vacina, de modo geral. São avanços importantes, mas ainda precisamos de muito mais para que se atribua um diferencial significativo a longo prazo na formação de pesquisadores, da pesquisa e para a melhoria da qualidade de vida da população em geral.
AUPA – Embora o objetivo seja o de que a vacina tenha ampla distribuição em toda a rede pública, os investimentos sociais privados foram muito importantes para levantamento de recursos. Acredita que a parceria entre os setores público e privado, no que se refere à pesquisa científica, tem tido resultados positivos?
Jaqueline Goes de Jesus – A parceria público-privada precisa se fortalecer muito mais no Brasil, pois impacta diretamente na produção da pesquisa científica brasileira. Esta parceria foi muito importante no momento da pandemia, mas ainda é incipiente, pois não existe uma conduta do setor privado em ter como prioridade o investimento em pesquisa científica. Eu acho que o Brasil só perde com isso, visto que grande parte dos países que avançam em produtividade contam com iniciativa privada e, quando isso não acontece, o Estado atua decididamente.
Quando se leva a sério a pesquisa científica, colhe-se os frutos a médio e longo prazos. Isso ficou muito evidente durante a pandemia.
AUPA – Por outro lado, a infraestrutura do SUS garante que a vacina chegue a todos os lugares, até os mais remotos. Concorda que o SUS é essencial para garantir a saúde como direito básico no Brasil?
Jaqueline Goes de Jesus – O SUS é um pilar fundamental para a saúde no Brasil. Falo isso de um lugar que não é meu lugar de fala, pois não sou usuária do SUS diretamente e sei que muitas pessoas de classe média, que tem planos de saúde também não são. Mas aprendi a ver o SUS muito além do atendimento primário, ou seja, o SUS não presta atendimento somente em postos de saúde e hospitais ou por meio dos médicos de família. Engloba a pesquisa, na qual estou inserida e a vigilância, para que possamos nos antecipar em relação a uma série de surtos que acometem o Brasil há bastante tempo e são mitigados devido à ação do SUS.
Por isso, é um dos pilares mais importantes do Brasil e o sucateamento do SUS, com a tentativa de destruí-lo, é realmente um tiro no pé. Se deixar de existir, grande parte da população vai ficar sem atendimento básico e vamos sofrer com muito mais frequência com epidemias e surtos que podem reaparecer.
AUPA – O impacto social vindo do desenvolvimento científico é evidente. Mas, quais serão os rumos do Brasil quando parece acontecer um boicote à Ciência?
Jaqueline Goes de Jesus – Se o Brasil continuar no caminho que observamos atualmente, a tendência é que o País volte a figurar o ranking dos países mais pobres, que não consegue ultrapassar a linha da miséria e da falta de Educação. Investir em Ciência não é somente investir em cientistas individualmente, mas nos benefícios que a Ciência traz para a sociedade, pois os cientistas compartilham conhecimentos que beneficiam a todos. Não consigo ver um futuro melhor para o Brasil se o boicote à Ciência continuar acontecendo, seja pelo descrédito, seja pelo negacionismo, seja pelos cortes de recursos que obviamente impactam diretamente no nosso trabalho.
Ao longo deste mês, a Aupa promove – no site e nas redes sociais – o especial #AupaMulheres. Serão conteúdos com diversas vozes de protagonistas do ecossistema propondo reflexões sobre a atuação e os obstáculos no setor.
No IGTV, o #SigaEssasMulheres traz cinco líderes, nos mais variados pontos de vista do campo, em um debate sobre um mundo mais igualitário.
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