Vou escrever do meu lugar de falar, uma mulher, negra e periférica, que nesse período de escritas aqui na Aupa vem tentando dialogar a partir do lugar que pisa. Digo ainda mais: do lugar que muitas das vezes é invisibilizada. É mês de março, “mês da mulher”, e ter um marco temporal, ainda no século XXI, se faz necessário.
Já inicio essa troca questionando se estamos inseridas, de fato, no ecossistema de negócios de impacto? Qual é mesmo o nosso lugar dentro deste espaço? Quais possibilidades ocupamos, por onde temos que ser fé e fel para seguir, quais forças precisamos ter para nos fazer ouvir?
Em 2020, escrevi um texto que falava que precisamos mergulhar de cabeça num ecossistema de NIPs que seja nosso, do nosso jeito brasileiro de ser, mas será que neste formato também teremos vez e voz? Difícil saber, os dias têm sido “atribulados”, como diria minha mãe, com vários negócios/empreendimentos sendo fechados, outros indo buscar apoio em diferentes frentes para se manterem pulsantes. E quem soma e quem some neste momento? Quantas manas conhecemos e que estão agora buscando manter o sonho ativo, mas com a geladeira cheia de água? Quantas? Quem somos neste tempo tão hostil?
Nesse mês de março, me perguntei, diversas vezes, sobre qual a cara do ecossistema de negócio de impacto feminino, quais os gêneros que temos, quais e quantas portas foram sendo abertas, quais institutos e fundações estão preparados para recebê-las, sem a falsa ideia de empatia, solidariedade e/ou mão estendida?
Queria trocar tantas ideias, mas preciso ser direta: neste momento, não estamos tendo tempo para ficar só nos questionamentos, afinal, a reflexão real dos tempos são as senhoras dos tempos, que são nossas mulheres que desde sempre estiveram e estão na linha da sobrevivência das suas famílias e das suas comunidades. Empreender e sobreviver nas gerações anteriores, ter um filho ou filha na faculdade (nos últimos 30 anos) também era uma premissa de sobreviver. Hoje, de modo especial 2020/21, parece que empreender é algo diferente pelo glamour e, principalmente, pelo sonho americano implantado em solo brasileiro (faça você mesmo). A linha é fina, porque entre fazer você mesma e explorar uma outra mão de obra é um passo. Vejo a romantização do empreendedorismo: senhoras e senhoras negras em meio ao caos buscando sobreviver, assim como lá no início nossas ancestrais africanas e afro-brasileiras criaram soluções genuínas, a partir de seus conhecimentos empíricos, para garantir o mínimo para sua sobrevivência e a compra de sua liberdade e da liberdade dos seus. Há séculos a narrativa não é contada por essas mulheres, afinal há sempre um homem, uma empresa ou uma organização que acha que as representa.
Se fôssemos fazer um retrato do momento feminino do Brasil, considerando o machismo e o sexismo que deixam morrer, qual seria esse registro? Já olhou o farol hoje? Já contabilizou quantas mulheres estão nestes locais vendendo água, chocolate, bala, ora sozinhas, ora com a família inteira? Já visualizou uma fila de espera pela cesta básica ou por um marmitex? Já olhou nos olhos destas pessoas, já encarou uma mãe que precisa levar algo para suas crias se alimentarem? Esse é o retrato do momento na maioria ou na totalidade das periferias do Brasil, dizer que mulheres nessa crise conseguiram criar oportunidades em cima das suas dores é uma falácia sem tamanho, é jogar com as nossas vidas, é criar um véu de fumaça que logo mostrará a cara. Dos milionários do Brasil que ganharam ainda mais com a crise sanitária que vivemos, quantas são mulheres? Me aponte uma, pois nem aqui somos representadas.
Entender a diferença entre representação e representatividade é o que nos difere nos dias atuais, entender a visão de público consumidor e potencialização de um público consumidor consciente é o que difere se seu negócio visa apenas o lucro de uma forma florida de dizer ou se ele realmente utiliza as trocas comerciais para potencializar a cadeia produtiva onde está envolvido.
Da mesma maneira que uma baiana potencializava seus pares e clientes em alguma rua do bairro do Pelourinho e, além do lucro obtido, também tecia alianças e redes para o povo o qual ela era representante. Esse é o X da questão entre o empreendedorismo social e a educação. O que une os dois é que são formas de investir capital financeiro e capital cultural para potencializar uma região ou população. No entanto, o que ainda percebo pelos lugares onde os meus pés pisam, muitas vezes, é que só estão diminuindo a pirâmide para que possam ficar no topo – e no topo teremos sempre os mesmos, as mesmas faces, os mesmos gestos e atitude, nada muda no jogo.
Estou pessimista nesse momento, mas buscando ouvir o meu interno para compreender os passos de quem veio antes e tecer possibilidades de reflexão coletiva. Mas não está fácil sobreviver com os meus ideais militantes, com a minha visão humanizadora das relações, em meio ao caos, as suposições e certezas se distanciam e dão muita vazão às dúvidas.
Quais são as suas questões, senhoras dos tempos?
Legenda da capa: obra da artista brasileira Maria Auxiliadora da Silva (1935-1974). A tela faz parte do núcleo temático “Rural”. s/d.
Ao longo deste mês, a Aupa promove – no site e nas redes sociais – o especial #AupaMulheres. Serão conteúdos com diversas vozes de protagonistas do ecossistema propondo reflexões sobre a atuação e os obstáculos no setor.
No IGTV, o #SigaEssasMulheres traz cinco líderes, nos mais variados pontos de vista do campo, em um debate sobre um mundo mais igualitário.
Não perca!
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