Será difícil esquecer os primeiros dias de março de 2020 e o assombro com que foi se constituindo, gradativamente, o avanço da Covid-19 no Brasil. Após inúmeros registros de verdadeiro cenário de guerra na Itália e outros países, a notícia dos primeiros casos no Brasil, principalmente em São Paulo, e as medidas iniciais dos governos estaduais e municipais de isolamento social trouxeram apreensão diante da necessidade de reorganização e proteção de nossas vidas. O ainda incerto impacto sanitário e econômico da doença no país naqueles primeiros meses de 2020 levou a diferentes formas de adaptação pessoal, profissional e institucional, variadas a partir da capacidade e inserção no mercado de trabalho formal, onde o trabalho remoto e o isolamento foram uma opção para alguns enquanto, para grande contingente de brasileiros e brasileiras, restou o total abismo e abandono social diante da ausência de um plano coordenado e liderado pela instância federal do poder executivo.
A inércia foi a política adotada pelo Governo Federal diante do quadro que se agudizava cada vez mais, amparada, como hoje sabemos, pela falaciosa e já famigerada tese da imunidade de rebanho. Nem ações sanitárias, tampouco econômicas, foram adotadas durante muito tempo, de forma que tal inércia só pôde ser rompida com a pressão da sociedade civil organizada sobre o parlamento brasileiro e a partir de iniciativas de inúmeras organizações do Terceiro Setor. Desnecessário é caracterizar aqui a atuação do Governo Federal brasileiro durante a pandemia (que até o momento de escrita deste texto, vitimou cerca de 615 mil brasileiros e brasileiras), que, de um papel aparentemente inerte no início, rapidamente se explicitou como um ativo promotor da crise sanitária – como já documentado e historicamente registrado pelo relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid no Brasil.
Diante deste verdadeiro desgoverno, o campo do investimento social privado, em sua multiplicidade de agendas e formas de atuação, buscou se adaptar para que pudesse dar continuidade à oferta de inúmeras e diversas ações aos mais variados públicos. Muitas foram as adequações e os investimentos feitos durante esses últimos dois anos, cuja caraterística emergencial, de contenção de danos e luta por manter direitos mínimos já conquistados – como o direito à renda mínima, à alimentação e à educação – foram as tônicas, sobretudo em 2020. O que tal contexto de emergência sanitária, social e econômica tem nos mostrado é que, ainda que estejamos atuando com vigor e dedicação, os desafios que se avolumam apontam para um cenário onde não será possível produzir impacto social real sem a construção de coalizões amplas que lidem com a complexidade e a gravidade do contexto social brasileiro agravado pela pandemia do Covid-19.
As Políticas Públicas residuais, cada vez mais estranguladas por agendas ultraliberais, vêm ao longo de vários anos suplantando os princípios de integralidade, universalidade e equidade no acesso aos direitos sociais, e não serão capazes de mitigar o sofrimento dos brasileiros mais vulneráveis. Tal cenário se torna dramático diante da constatação de agravamento da crise financeira, matizado com um Estado que se encontra capturado por uma agenda avessa ao social e adepto às mais obtusas e rasteiras práticas políticas, que tendem a se expandir no ano eleitoral de 2022. Daí o papel estratégico das organizações do Terceiro Setor de fortalecer os horizontes estabelecidos na Constituição de 1988 de defesa e garantia dos direitos sociais de cidadania, compreendendo, inclusive, a própria democracia enquanto valor que se encontra hoje como um dos alvos de movimentos radicais espraiados pelo país.
É neste sentido que asseveramos ser falsa a percepção de que as coisas no campo do investimento social podem voltar a uma normalidade e que poderíamos seguir com os mesmos conceitos e estratégias que têm norteado nossas ações até então. Não estamos diante de um “novo normal”, mas de uma emergência social de grandes proporções que já se apresenta, mas que avançará nos próximos anos.
O papel das organizações da sociedade civil é muito importante diante deste contexto. Todo seu acúmulo no campo da assistência direta ou indireta à população, mas também suas capacidades técnicas de gestão, planejamento, avaliação, diagnóstico e inteligência no aporte estratégico de recursos precisam convergir para agendas comuns, e é neste aspecto em especial que queremos estabelecer a provocação central deste ensaio:
o sentido de impacto social que ora orienta as estratégias do campo do investimento social privado será insuficiente para alcançar mudanças concretas no dramático contexto social que a pandemia de Covid-19 no Brasil e no mundo precipitou sobre o já grave quadro social brasileiro.
Acreditamos que, cada vez mais, será preciso revisitar o sentido de impacto com o qual operamos no campo social, desafiando-nos a compreender seu caráter coletivo, complexo, político e multideterminado, sob o risco de incidirmos em um discurso que somente faz sentido nos relatórios anuais publicados em nossos sites e nos modelos teóricos que desenhamos em nossos planejamentos e avaliações, mas que não é capaz de colaborar para dirimir os problemas sociais complexos.
Neste aspecto, parece-nos oportuno e necessário resgatar o conceito de impacto coletivo, tema que tem sido proposto no Brasil por diversas organizações, e cuja formulação tem ganhado notoriedade a pelo menos mais de uma década, entre outras obras, com a publicação do artigo de John Kania e Mark Kramer. Neste texto de 2011, intitulado “Collective Impact”, na sessão Essential of Social Inovation da revista eletrônica Stanford Social Innovation Review (SSIR), os autores defendem o conceito de impacto coletivo enquanto norteador das estratégias que ambicionam mudanças em larga escala, considerando que a capacidade de iniciativas isoladas alcançar o impacto social é restrita. O impacto coletivo é defendido pelos autores enquanto articulação e compromisso de vários atores em torno de uma agenda comum ao longo do tempo, envolvendo amplo conjunto de parceiros, como instituições executoras, financiadores, poder público e demais organizações e atores sociais envolvidos com um problema social específico. Não se trata de algo incompreensível e impraticável no campo do investimento social brasileiro, já acostumado a estabelecer parcerias, mas as iniciativas de impacto coletivo devem ir além. Ainda segundo os autores do referido artigo: “[…] as iniciativas de impacto coletivo envolvem uma infraestrutura centralizada, uma equipe dedicada e um processo estruturado que leva a uma agenda comum, medição compartilhada, comunicação contínua e atividades de reforço mútuo entre todos os participantes.”
Os desdobramentos econômicos e sociais da pandemia do Covid-19 no Brasil irão exigir mais das organizações do Terceiro Setor. Não será suficiente energizar agendas de forma atomizada, ainda que com as melhores e mais nobres intenções. Vale a pena destacar ainda a afirmativa de John Kania e Mark Krame em sua reflexão acerca da constituição complexa dos problemas sociais, que deveria nos soar evidente, se não óbvia, diante do acúmulo teórico e prático do campo do investimento social privado brasileiro ao longo dos anos: “Os problemas sociais surgem da interação das atividades governamentais e comerciais, não apenas do comportamento das organizações do setor social. Como resultado, problemas complexos só podem ser resolvidos por coalizões intersetoriais que envolvam pessoas fora do setor sem fins lucrativos.”
Assim, acreditamos que o conceito de impacto social precisa ser rediscutido e seu sentido merece ser revisitado, tanto para entender seus limites, quanto para potencializar sua concretude e real potencial de transformação. O impacto coletivo é uma concepção que parece compreender a complexidade dos problemas sociais e se constitui enquanto alternativa para concretizar transformações concretas na vida das pessoas por meio de um olhar sistêmico em que as parcerias ganham relevância estratégica.
No entanto, a reflexão crítica acerca do sentido de impacto social não precisa parar por aí. Aquilo que entendemos como transformação e mudanças, que estão na gênese do sentido corrente de impacto, precisa ser qualificado, pois o grave contexto brasileiro não mais comportará platitudes. Afinal, qual transformação concreta estamos visando? De que maneira estamos próximos de alcançar tal impacto? O que é factível ao meu negócio, ao meu programa e à minha instituição em termos de alcance de impacto frente às dramáticas necessidades brasileiras que se acentuaram durante a pandemia? São provocações que urge serem feitas a todos e todas nós que neste campo atuamos e depositamos nossa energia e nossos recursos. O contexto pede reflexão crítica, compromisso social e concretude das estratégias para que, de fato, as organizações do Terceiro Setor possam produzir mudanças reais.
Diante do que vimos expondo, caberia, ainda, a seguinte provocação: o termo impacto coletivo talvez seja uma redundância, pois o impacto social só pode ser coletivo, na medida em que estratégias isoladas e descoladas de múltiplos esforços, agendas políticas, atuação de movimentos sociais, articulação com Políticas Públicas e iniciativas diversas e convergentes do investimento social privado podem não estar de fato produzindo mudanças impactantes. Não à toa, temos, cada vez mais, buscado pautar nos espaços de debates e aprendizagens a importância em se ater aos resultados das intervenções, que, em uma compreensão acerca dos tipos de efeitos produzidos pelas iniciativas sociais, estaria em um grau de governabilidade ao alcance das organizações, diferentemente do impacto, que implica uma perspectiva sistêmica e coletiva. Esse é um debate que suscita divergências e que poderá ser tratado em outra oportunidade.
Em suma, nossa provocação neste ensaio pode ser sintetizada da seguinte maneira: ou nos comprometemos a desafiar o sentido de impacto para além das idealizações de nossas Teorias de Mudanças e nossas agendas restritas, ou reproduziremos uma retórica de impacto que não colabora concretamente para mitigar as várias expressões da questão social brasileira agravadas com a pandemia de Covid-19.
Leia também: os artigos de iniciativa da Anpecom, de 2019, e da Move Social, em 2017, respectivamente.
Este artigo é uma reflexão de Max Felipe Vianna Gasparini, sócio-consultor da Move Social.
Na Move Social desde sua graduação (2012), Max segue no momento com seu doutorado em Ciências da Saúde com foco na temática da avaliação pela UNIFESP. Trabalha com avaliação de programas e projetos nas áreas de saúde e garantia de direitos, além de liderar formações em avaliação. É membro do Laboratório de Avaliação de Programas em Saúde da UNIFESP e foi avaliador do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica, realizado pelo Ministério da Saúde. É mestre em Saúde Coletiva pela USP e bacharel em Serviço Social pela UNIFESP.
Max também tem se dedicado ao estudo da Filosofia, desafiando o tempo todo o sentido das coisas. Com raízes no interior paulista, sua outra fonte de aprendizado é seu jardim, que lhe faz perceber o valor de cuidar de algo para os outros (pessoas, abelhas, pássaros…).
* Max agradece Valéria Lapa e Gabriela Brettas pelo apoio na revisão cuidadosa e interlocução generosa para a versão final deste ensaio.
Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete, necessariamente, a opinião de Aupa.
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