vista aérea de Paraisópolis

A violência ocorrida em Paraisópolis, com nove mortes, em 1º de dezembro, no baile funk da DZ7, expõe a brutalidade e as desigualdades (no plural) que caracterizam o cotidiano de quem vive em periferias urbanas. Naquela mesma noite, também houve ação truculenta em Heliópolis, mais um bairro favelizado na capital paulistana, onde ocorreu uma morte também em baile funk.

O episódio choca, assim como tantos outros, que também são “midiatizados” ou não. Uma realidade que revela a exposição de moradores desses territórios às consequências das disparidades sociais, do racismo e das demais violências estruturais no Brasil, que perpassam questões socioeconômicas, culturais, de raça/etnia, entre outras.

Mas, diante desta conjuntura, como o ecossistema de impacto pode atuar?

Em sua coluna publicada no UOL, o jornalista e empreendedor social Tony Marlon fez esse questionamento para o campo. A pergunta é complexa e demanda olhares sob diferentes ângulos para o início de ações – por isso, cabe ao setor 2.5, por um todo, voltar-se ao quadro, para reconhecer seu papel social e propor potenciais soluções. Para tentar responder essa pergunta, a reportagem da Aupa procurou fundações, universidades, empreendedores do setor, entre outras lideranças do campo de impacto social.

A Banca, produtora cultural social de impacto positivo, por exemplo, utiliza a música, a cultura Hip-Hop, bem como a educação popular e a tecnologia para promover a inclusão, o fortalecimento identitário e o empreendedorismo juvenil na periferia. “Já pensou em qual ecossistema de negócios de impacto quer operar? O que propõe que a quebrada seja beneficiária ou o que dialoga para esta ser parte integral ou parcial das suas soluções?”, indaga Fabiana Ivo, coordenadora pedagógica da A Banca e da ANIP (Aceleradora de Negócios de Impacto da Periferia). Aos negócios, fundações, institutos e demais investidores, vale lembrar a importância do dinheiro aportado para que novas oportunidades surjam da periferia para ela mesma, bem como a importância do diálogo entre os dois lados da ponte. A mudança na vida de cidadãos localizados nas periferias urbanas é uma das principais demandas do ecossistema em sua consolidação e desafios constantes.

A educação é certamente um dos elementos democráticos que podem ajudar na busca por soluções socioambientais diante das violências estruturais, sobretudo aquela cujo processo se dá junto da população periférica, considerando suas particularidades e urgências. “É dever do Estado proporcionar as condições para que esses espaços possam efetivamente serem locais onde os jovens que residem nas periferias tenham acesso à cultura, não somente como espectadores, mas, sim, como produtores de conteúdo. O poder público deve costurar, junto à comunidade, políticas que atendam a necessidade e o interesse desses jovens, que querem fazer parte de algo, querem ocupar seu tempo com algo que seja interessante”, explica Cícero Gomes, professor de História e presidente da Unegro unidade Mogi das Cruzes.

Rene Silva. Crédito: Rafael Moura.
Rene Silva. Crédito: Rafael Moura.

Veículos de comunicação especializados nestes territórios também são ferramentas importantes para o impacto positivo, como o Voz da Comunidade, no Rio de Janeiro, idealizado e administrado por Renê Silva.

A Fundação Tide Setubal é uma das organizações que atua com ações voltadas à educação e transformação social das periferias paulistanas – não à toa, gerencia o Galpão ZL, no Jardim Lapena, e firmou cooperação com a Unifesp para estudos sobre periferia urbana

 

Economia, cultura e violência        

Algumas precauções devem ser tomadas ao se fazer leituras históricas para se entender o presente, sua estrutura e suas violências. Apoiar-se na história e na formação das cidades não significa aceitação, mas, sim, a oportunidade de problematização para um possível entendimento dos desafios do hoje. E é neste gancho que o ecossistema de impacto pode atuar e que protagonistas, vindos destes territórios marcados por desigualdade, violência e resultados do processo de gentrificação nos grandes centros, podem expor necessidades locais. Ressalta-se também que a violência não pode ser encarada como um mecanismo humano “natural”: a opressão não pode ser recolocada e enfatizada como um protagonista para o uso da violência para a resolução de conflitos sociais.

E vale o alerta: “A violência é, inclusive, uma das formas pelas quais as desigualdades se acentuam em nossa sociedade. É inegável que a população pobre, negra e que habita nas periferias são mais suscetíveis a serem alvo de ações violentas por parte das polícias, por exemplo”, explica Gustavo Higa, sociólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP).

Vanessa Gatti, socióloga e pesquisadora especializada em música, afirma que a violência sofrida pela população periférica em festas, bailes, shows ou eventos, por parte do Estado, é resultado da criminalização de todo o modo de vida da referida população, e, portanto, uma violência arbitrária, por motivação classista e racista. “A atuação policial truculenta em bailes funks e shows de rap, principalmente, está muito distante do modo de atuação da polícia em festas, eventos e shows frequentados por pessoas de classes sociais mais elevadas, por exemplo, em  raves, cujos frequentadores, em sua maioria, são pertencentes a uma classe média e alta. O uso e tráfico de drogas também é frequente nesses eventos, como é sabido”, contextualiza Gatti. “A questão não foi o baile em si, mas o ‘onde e ‘quem’ foram os facilitadores para a ação policial. As desigualdades também se refletem nas formas como a violência policial opera no corpo e na alma nas pessoas”, explica Higa.

O caso de Paraisópolis é emblemático do processo de marginalização e estigmatização sofrido pela população periférica no seu tempo de lazer e em suas expressões culturais”, explica a pesquisadora. Assim, cabe a aproximação entre o episódio em Paraisópolis e a prisão do DJ Rennan da Penha, no Rio de Janeiro, de modo a ficar patente a estigmatização, com graves consequências.

A tríade violência, Estado e populações periféricas é tema de debates há tempos, sobretudo acerca da garantia dos Direitos Humanos e da recorrência de ações truculentas por parte da Política Militar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, por sua vez, completou 71 anos no último 10 de dezembro e tem ligação com o massacre de Paraisópolis.

Um dos desafios dá-se justamente na forma como a sociedade civil e suas organizações podem contribuir para a quebra desta naturalização da violência trazendo à tona questões e consequências como o racismo e as desigualdades enfrentadas, sobretudo, pela base da pirâmide socioeconômica. Higa indica um caminho: a democracia. “Apesar de não existir uma receita para lidar com esse problema, podemos analisar, com espírito democrático, o que não está funcionando e decidir novos rumos, partindo de experiências como em Paraisópolis, além da tortura no Supermercado Ricoy, as mortes da menina Ágatha Félix e da vereadora Marielle Franco, os incontáveis massacres nas prisões, entre outros”. Gatti completa: “Quebrar com o processo de  marginalização exige a formação de movimentos e organizações, atuando em diversas frentes, como as políticas públicas, os currículos educacionais e meios de comunicação”.

Ações e campanhas, como a Jovem Negro Vivo, lançada pela Anistia Internacional são alguns dos movimentos propositivos para reflexões e mudanças que possam garantir direitos básicos à população mais vulnerável. Segundo a Anistia, das 56 mil pessoas assassinadas no Brasil em 2012, 30 mil eram jovens entre 15 e 29 anos e, deste número, 77% eram negros.

A junção entre Estado, sociedade civil e empreendimentos voltados a soluções de impacto com representação da periferia faz parte do contexto orgânico e mutante que o ecossistema, dia a dia, aprende a construir junto.

E, talvez, a urgência derivada das desigualdades diante de contextos tão complexos seja o desafio ao ecossistema de negócios de impacto social. Como agir?

 


 

Vozes da periferia

 

No diálogo para a montagem desta reportagem, Aupa fez a seguinte pergunta para diversos atores do campo: como esta violência em Paraisópolis implica no ecossistema de negócios de impacto e sua atuação diante das desigualdades – se por um lado, há a morte de jovens negros residentes em periferias urbanas, por outro, dentro do ecossistema, as lideranças dos negócios de impacto costumam ser homens brancos e de classes mais altas. Como o setor de impacto pensa essa contradição?

Abaixo, a reprodução da resposta de Fabiana Ivo, coordenadora pedagógica da A BANCA/ANIP.

“A cena já é conhecida na periferia: ela é vivenciada desde meados dos anos 1980, nunca foi fácil ser periférico em uma cidade que invisibiliza suas contradições sociais. O ocorrido no Paraisópolis, com a morte dos nove jovens, é a ponta de um iceberg que vem de longe mostrando sua pior face – o racismo institucional. Falamos sobre racismo institucional, porque quem mais morre por arma de fogo e pela mão do Estado fardado é preto, pobre e periférico; tem cor e CEP.

Somos uma produtora que vem, ao longo de sua trajetória, discutindo o lugar que a periferia ocupa, seja nas áreas culturais, educacionais ou no ecossistema de negócios de impacto, sendo este último, por sua vez, pensado para criar soluções para comunidades e pessoas de baixa renda. Neste contexto do ecossistema tradicional, sempre lutamos para que a periferia fosse reconhecida como protagonista, como pessoas que têm em seu fazer cotidiano soluções, por vezes, até complexas e elaboradas frente à realidade que vivem. Lutamos para que mais mulheres e homens pretos fossem visibilizados em suas ações e “escrevivências”.

Precisamos fazer com que situações de caos, como esta estejam em nossos discursos, não as deixando irem para o esquecimento. Ou, ainda, impedindo que sejam vistas como casos isolados. Precisamos compreender que os negócios de impactos sociais devem olhar para diversas áreas e dialogar com os envolvidos no contexto, não para desenvolverem suas pesquisas e hipóteses, mas, sim, para cocriarem juntos soluções. Compreendemos também que criminalizar uma juventude pelo seu fazer cultural é tática de um Estado que não consegue trabalhar com a mobilidade intelectual e de direito que vem sendo construindo.

O ecossistema tradicional de negócios de impacto não pode, de forma alguma, compreender que o ato realizado é por conta dos jovens que nem estudam ou trabalham ou porque ‘coitadinhos’ (sic) não tem onde se divertir. Somos o sétimo país mais desigual do mundo e esta informação deve ser a força motriz do nosso querer fazer. Precisamos considerar esta informação e entender que os passos que nos distanciam de diminuir essa desigualdade, muitas vezes, estão atrelados ao assistencialismo ou ao salvacionismo que alguns negócios propõem.

Compreender a quebrada como parte central da cidade, o seu fazer, o seu pulsar de dentro para fora, suas soluções e intervenções amparadas por espaços que, ao invés de pesquisas, cursos sem contextos, benefícios sem diálogos, possam apoiar a construção de conhecimento e de articulação com o ecossistema financeiro para combater parte da desigualdade.

O que matou os nove jovens foi a desigualdade de direitos, o racismo institucional, a forma de compreender que os CEPs são inimigos diretos por não serem parte do que o sistema racista considera como sociedade. Já pensou que poderia ser você? Ou seu filho? Já pensou que isto pode ser um rastro que poderá acontecer em outras quebradas? Já pensou se você vai seguir calado? Já pensou em qual ecossistema de negócios de impacto quer operar? O que propõe que a quebrada seja beneficiária ou o que dialoga para esta ser parte integral ou parcial das suas soluções? Reflita e pense. Sua ação pode evitar que outras ações de homicídio aconteçam. Somos a pedra no sapato que seguirá mostrando a conexão da liberdade com a igualdade. Somos a pedra que irá demonstrar em todas as suas ações o quão o preto e o pobre podem ser protagonistas das soluções para suas vidas e para a sua comunidade. Que possamos SER!”.

Os nomes dos jovens mortos em Paraisópolis são: Denys Henrique Quirino da Silva, 16; Gustavo Cruz Xavier, 14; Gabriel Rogério de Moraes, 20; Mateus dos Santos Costa, 23; Bruno Gabriel dos Santos, 22; Dennys Guilherme, 16; Marcos Paulo, 16; Luara Victoria de Oliveira, 18 e Eduardo Silva, 21.

 

A relevância do tema e a importância de um debate mais profundo dentro do campo de impacto, torna esse conteúdo aberto a posicionamentos de outros atores. A Aupa reassume seu compromisso jornalístico de dar voz a todos que atuam para a construção do setor.

2 comentários

  1. Olá, pessoal!
    O texto está muito bem escrito, mas faltou vocês falarem com pessoas que atuam em Paraisópolis. Se a ideia era escrever sobre como agir no território, nada melhor que falar com quem já está em ação por lá.
    Grande abraço,

    • Olá, Nathalia. Tudo bom?
      Muito obrigada pelo comentário. Nós tentamos, sim, a entrevista com algum empreendedor ou agente de Paraisópolis, porém, não obtivemos resposta até a publicação do texto. Deixamos salientada a abertura de diálogo e inclusão da resposta. Um grande abraço

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