Por uma antropofagia dos negócios de impacto no Brasil

Tropicalizar é também descolonizar. Redesenhar a relação colonizadores X colonizados com as quais, muitas vezes, lidamos com o que vem de fora.

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A obra Abaporu de Tarsila do Amaral foi referência no movimento tropicalista brasileiro e fez parte do manifesto antropofágico liderado pelos modernistas.

“Seja marginal, seja herói.” Esta foi a inscrição de uma das obras que fez Hélio Oiticica (1937-80) ficar conhecido no mundo. Junto com ele, o Tropicalismo, movimento de vanguarda expresso na música, nas artes plásticas, no cinema e no teatro no fim da década de 1960. O Tropicalismo misturou manifestações tradicionais da cultura brasileira com inovações trazidas por correntes artísticas internacionais. Foi com certo orgulho que visitei, recentemente, a instalação Tropicalismo, no Tate Modern, aqui em Londres. E me vi perguntando: “O que mais precisamos tropicalizar no Brasil? E no campo dos negócios de impacto social?”.

Tropicalizar significava, no ideário dos vanguardistas, apropriar-se da cultura das grandes potências mundiais (Europa e Estados Unidos) e recriá-la a partir das referências da cultura brasileira. O Tropicalismo foi, antes de tudo, um movimento de reafirmação da nossa identidade cultural: diversa, inovadora e marginal. Tropicalizar o campo dos negócios de impacto social representaria, portanto, o mesmo movimento.

Inspirar-se no conhecimento aportado por ecossistemas que são referências no mundo para construir nossa própria identidade empreendedora.

É certo que os empreendedores sociais brasileiros têm se destacado no mundo. Poderia citar aqui uma dezena deles, como o Programa Vivenda, voltado para habitação, cujo modelo de investimento baseado na primeira debênture brasileira de impacto social foi premiado pela ONU-Habitat no ano passado. Ou ainda o Programa Origens Brasil®, criado pelo Imaflora e Instituto Socioambiental (ISA), que tem estimulado negócios mais éticos e transparentes com produtos da sociobiodiversidade, que, há poucas semanas, recebeu o Prêmio Internacional de Inovação para a Alimentação e Agricultura Sustentáveis da ONU.

Celebremos os bons exemplos que nos colocam na dianteira do mundo. No entanto, ainda é válida uma atenção especial a outras nuances trazidas no conceito de tropicalizar.

O Tropicalismo foi um movimento que trouxe um olhar para “dentro” da cultura brasileira e uma projeção “para fora”, na tentativa de ressignificar nossas trocas com o mundo. Aqui vale um olhar atento na forma como nos relacionamos com o que vem de fora. Inevitável não pensar em nosso vocabulário impregnado de termos importados do Vale do Silício, nas metodologias usadas para acelerar negócios e na maneira com que temos estimulado investidores.

Não estamos negando ou desvalorizando as boas referências mundiais. Talvez Oswald de Andrade (1890-1954) tenha algo a nos dizer com a célebre frase com a qual inaugurou o Manifesto Antropofágico (1928): “Só a antropofagia nos une”. Sua proposta era “ingerir” a cultura estrangeira para recriar uma arte tipicamente brasileira. Os tropicalistas foram além e incorporam tendências da cultura pop, referências clássicas e populares estrangeiras, num caldo cultural que representou um dos mais reconhecidos movimentos artísticos brasileiros.

Nesse sentido, tropicalizar é também descolonizar. Redesenhar a relação colonizadores X colonizados com as quais, muitas vezes, lidamos com o que vem de fora (conceitos, investimentos, inovações). Pode representar ainda uma mudança na forma como colocamos nossas ideias no mundo. Aqui vale uma menção sobre a ainda incipiente participação brasileira nas publicações acadêmicas internacionais sobre empreendedorismo social, especialmente na Europa.

Tropicalizar refere-se ainda à valorização da nossa diversidade. Reconhecer a emergência de novos atores e novas vozes.

Estamos falando do empreendedorismo praticado pelas comunidades extrativistas na Amazônia, dos empreendimentos da economia solidária que marcam considerável presença no Nordeste, dos negócios de impacto que emergem nas periferias, do afroempreendedorismo de impacto social. Falamos ainda de outros territórios, ou seja, da inventividade empreendedora que supera os limites do eixo Rio-São Paulo, centro e periferia.

É sobretudo no jeito de fazer onde temos o potencial de promover uma profunda transformação. Isso nos remete à esperança de que o campo dos negócios de impacto social, inspirado na inovação proposta pelo tropicalismo, busque novos jeitos de resolver nossos desafios sociais. Muitos de nossos problemas não têm sequer precedentes em nenhum país do mundo, como, por exemplo, o desafio de desenvolver uma economia da floresta em pé com as dimensões amazônicas, ou questões fundiárias urbanas e rurais relacionadas ao nosso passado colonial e escravocrata.

Para finalizar, resgato uma passagem do filósofo francês Edgar Morin que diz: “Toda evolução é fruto de um desvio bem-sucedido cujo desenvolvimento transforma o sistema onde nasceu”. Que sejamos desviantes e inovadores à altura de nossos desafios. Marginais e heróis, com lugar cativo no Tate Modern ou em qualquer outro grande centro de empreendedorismo social do mundo.

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