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Boa leitura!
No enfrentamento ao racismo ainda há contradições e a permanência de preconceitos estruturais. Enquanto as mobilizações em torno de pautas sobre raça nascem e somem na velocidade de uma hashtag, o Terceiro Setor ainda caminha para alcançar a igualdade dentro das organizações. Será que estamos fazendo todo o possível para conter a disseminação da violência e o desrespeito à população negra?
A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. O dado da ONU, divulgado em 2017, vem de um longo processo histórico refletido na população negra até hoje. “Desde o ‘descobrimento’ do Brasil o racismo foi um elemento extremamente ativo, com a brutal perseguição e a escravização de diversos grupos indígenas, que foram dizimados. Com a chegada da população escravizada de origem africana, no final do século XVI, essa violência consolidou-se por longos séculos, naturalizando-se aos olhos da elite branca. Esse passado deixou marcas que ainda ferem a atualidade”, explica Gustavo Higa, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP) e doutorando no Departamento de Sociologia na mesma instituição..
Séculos depois, as estatísticas não mudaram: 75,5% dos homicídios no Brasil são de pessoas negras, de acordo com o Atlas da Violência. Segundo Gustavo, a violência direcionada apresenta-se hoje, por exemplo, na seletividade penal, na abordagem e na letalidade policial, além do sustento das relações de poder. “A ‘lista’ é tradicionalmente longa e se atualiza a cada dia”, aponta.
Policiais em serviço e fora de serviço foram autores de 2,4 mortes intencionais por dia no Estado de São Paulo em 2019, uma estatística crescente em relatórios do Instituto Sou da Paz. A ONG dedicada a mobilizar a agenda pública para reduzir a violência e preservar vidas reivindica o que, sem o racismo estrutural, poderia ser o mínimo: checagem do uso legítimo da força policial, devida responsabilização em casos de uso ilegítimo da força e estratégias de formação desses policiais.
“Há racismo ou não há racismo nas polícias? Essa é uma pergunta não só para apontar o dedo e dizer ‘polícia racista’, mas para incentivar a polícia a olhar para si, fazer um debate público franco sobre recorte racial. Também existem negros lá dentro, mas reconhecer e buscar trabalhar o racismo estrutural ainda é um tabu”, observa Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz.
Entre as iniciativas lideradas pela organização está o Prêmio Polícia Cidadã, que identifica práticas de inteligência policial, não discriminação e aproximação com a comunidade.“Jogar luz no que existe de bom também é exercer o controle social positivo”, defende a diretora.
Outro ponto de atenção é reconhecer que uma série de práticas governamentais acaba por legitimar a violência. Com a vitória de Jair Bolsonaro (sem partido), venceu o discurso de militarização, uso da força para resolução de problemas e incentivo ao armamento dos cidadãos. Em maio de 2020, disparou a compra de munições por pessoas físicas. “Nunca se falou tanto em defesa dos Direitos Humanos, mas, ao mesmo tempo, fortaleceu-se um discurso contrário a ele”, analisa Gustavo, pesquisador do NEV. Enquanto isso, cresce o número de assassinatos em meio a pandemia da COVID-19 e ainda não se sabe exatamente o porquê.
#VidasNegrasImportam: o debate contemporâneo
Entre maio e junho começou a circular em diversos veículos de comunicação a hashtag #BlackLivesMatter – no Brasil, também com a versão em português, #VidasNegrasImportam. A manifestação pelo racismo e a truculência policial começou motivada pela morte de George Floyd, sufocado durante 8 minutos e 46 segundos por um policial em Minneapolis (Estados Unidos), há pouco mais de um mês. O assassinato, que foi gravado em vídeo, foi disseminado nas redes sociais e rapidamente surgiram muitos outros exemplos: Breonna Taylor, morta a tiros por policiais em Louisville; no Brasil, João Pedro, atingido por um tiro de fuzil dentro da casa de um primo, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio – a residência foi alvejada por mais de 70 tiros numa operação policial realizada no bairro.
Com a pauta racial inflamada nas redes, em poucos dias a hashtag virou espaço de apoio, visibilidade e valorização de profissionais, artistas e pensadores negros, além de um grande movimento de protesto virtual por vidas ceifadas de forma cruel e infundada. Até 14 de junho, a busca de #BlackLivesMatter no Instagram já apresentava mais de 22 milhões de resultados.
A questão é que, ainda que um post nas redes sociais viralize com o uso de hashtags populares, a vida útil de uma publicação pode variar entre 21 horas, no caso do Instagram, e 18 minutos, no caso do Twitter, segundo o Inbounder. Ou seja: se um debate nasce no meio digital, ele corre o risco morrer tão rápido quanto começou.
No mesmo dia do “blackout”, a realidade off-line atingiu de forma chocante mais uma vez: o menino Miguel Otávio, de 5 anos, morreu por desleixo de Sari Gaspar Côrte Real, que o deixou andar sozinho no elevador à procura da mãe, que trabalhava como empregada doméstica para a família de Sari e passeava com o cachorro da patroa. Nas ruas, cartazes manifestando que uma vida teria valido apenas 20 mil reais – o preço pago por Sari pela fiança, após sua prisão. Mas e as hashtags, quantas seriam necessárias para salvar uma vida?
Por dentro e por fora: o combate ao racismo nas organizações de Terceiro Setor
“Quando acontece um caso muito emblemático, como os de George Floyd ou de Miguel Otávio, se fala muito sobre isso, mas restringe-se àquela semana. Depois passa. É um desafio como o das instituições de Terceiro Setor: fazer a discussão ser permanente, nunca sair da agenda”, reflete Carolina. A sensação é de que o ecossistema de impacto passa por uma tomada de consciência acerca do racismo estrutural, já que o empreendedorismo negro começa a encontrar espaço no setor com o crescimento de iniciativas como Fa.vela e Preta Hub.
No entanto, é exatamente o fato de que os negócios do ecossistema liderados por negros ainda podem ser contados nos dedos que representa a urgência do debate. De acordo com Carolina, a necessidade de “encabeçar a mudança” e começar a enegrecer as organizações pode ser impulsionada por discussões internas e a formulação de políticas de ações afirmativas para a inserção de negros entre os profissionais, como tem feito o próprio Instituto Sou da Paz.
Pautas como essa têm sido levantadas também por organizações ,como a Fundação Tide Setubal, que lidera debates sobre equidade de gênero e raça no mercado de trabalho e em instituições públicas e privadas. A proposta da organização é diminuir a desigualdade socioespacial por meio do aumento do potencial de vozes da periferia, apoio de práticas que fomentam ações afirmativas, mobilização do investimento social privado para a agenda racial de gênero e impulsionamento do letramento racial.
“É importante participar do debate nas redes sociais, mas também pensar de que forma a gente coloca tudo isso em ações práticas e concretas. Pensar em cotas e em como a gente coloca pessoas negras em espaço de decisão – executivo, legislativo, líderes de empresas”,
reivindica Viviane Soranso, coordenadora do programa de raça e gênero da Fundação Tide Setubal.
Entre as 500 maiores empresas do Brasil, os negros ainda ocupam menos de 5% do quadro executivo e conselhos de administração, segundo o Instituto Ethos. Estatísticas como essa têm sido pautadas nas redes temáticas do GIFE, que mobiliza empresas em torno do investimento social privado. Ao lado de outras empresas, a Fundação Tide Setubal tem coordenado debates sobre raça em instituições tradicionalmente lideradas por brancos. “Mesmo no investimento social privado o maior desafio é olhar pra dentro. Não é qualquer empresa que topa se abrir e repensar a maneira como está sendo estruturada, quem compõe o quadro de tomadores de decisão – é o próprio racismo estrutural sendo efetivado”, revela.
O papel de cada um
Entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU está a redução das desigualdades (ODS 10), representando que até 2030 o mundo deve ter alcançado a inclusão social e a igualdade de oportunidades para todas as pessoas, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra. Os desafios trazidos pela pandemia da COVID-19 podem fazer a Agenda 2030 parecer um sonho distante, mas isso não exclui o compromisso de governantes, tomadores de decisão e civis de fazer sua parte para mitigar questões urgentes como o racismo e discriminação. É o decente a se fazer, para não dizer o mínimo.
“O Estado precisa realmente priorizar e alocar as políticas de saúde, educação, assistência, cultura e também de segurança não apenas em áreas centrais e ricas na cidade, mas principalmente nas áreas periféricas, onde policiais têm sido alocados como forma de punição”,
recomenda Carolina, diretora do Instituto Sou da Paz.
A pauta de combate ao antirracismo deve permanecer para além de momentos de inflamação internacional – afinal, assim como as hashtags, as práticas racistas estão sempre em renovação. A mobilização em torno da COVID-19 mostra que é possível, sim, captar investimentos, trazer visibilidade e mobilização a uma causa que diz respeito a todos. Já imaginou se pudéssemos movimentar bolsos e cabeças em torno de uma doença crônica muito mais antiga?