

Foi na Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé (AMISM), na Zona Oeste de Manaus, que Samela Sateré Mawé cresceu participando de reuniões, atos e manifestações protagonizadas por líderes indígenas. O ativismo vem de berço: a avó Zenilda Sateré Mawé fundou a AMISM e, junto com a filha Sônia Sateré Mawé – mãe de Samela -, coordenou grandes movimentos, como a luta por reserva de vagas para indígenas na universidade, institucionalizada em 2004 no Amazonas com base na lei estadual nº 2894. Hoje, Samela contempla uma das vagas reservadas como estudante de Biologia na Universidade Estadual do Amazonas (UEA).
Sua trajetória perpassa o ativismo digital e a participação em movimentos globais, como o Fridays For Future, fundado por Greta Thunberg. Como colabora na AMISM, Samela participa da produção e da comercialização de máscaras customizadas com grafismos indígenas que têm garantido a subsistência do grupo e a assistência às comunidades indígenas na pandemia. Nas redes sociais, faz questão de abordar os desafios vividos por indígenas brasileiros e repercutir informações sobre o impacto da Covid-19 na Amazônia. Atualmente, há cerca de 50 mil casos confirmados entre indígenas, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e a demarcação de terras indígenas passa por um momento crítico dada a priorização de políticas e normativas que favorecem grandes produtores e agricultores não indígenas.
Leia a seguir a entrevista com Samela Sateré Mawé sobre sua trajetória como ativista, os desafios da pandemia para populações indígenas e os impactos da omissão de governos, empresas e sociedade civil nos cuidados com o meio ambiente e o apoio às comunidades tradicionais brasileiras.
AUPA – Qual é a importância de reservas de vagas para populações tradicionais nas universidades? E, como estudante, que saldos você visualiza ao unir o conhecimento acadêmico e o saber tradicional?
Samela Sateré Mawé – Eu ingressei na Universidade do Estado do Amazonas em 2015, a partir da política de cotas, fruto de um movimento no qual minha avó e minha mãe participaram e que possibilitou que eu e meu irmão fôssemos os primeiros da família a ingressar na universidade. A reserva de vagas para acadêmicos indígenas é um processo histórico, uma dívida histórica, porque se formos comparar a educação em escolas públicas e em escolas indígenas e ribeirinhas, não estamos preparados para competir com alunos que vêm de escolas particulares.
Além de priorizar o acesso de povos tradicionais à universidade, é preciso pensar em políticas de permanência desses jovens, já que muitos saem de suas aldeias e comunidades para estudar nas cidades e acabam sofrendo muitas violações. Por questões socioeconômicas e culturais, por dificuldades da língua, acabam desistindo.
Nós [jovens indígenas] estamos ingressando no Ensino Superior e fazendo cursos diversos, criando oportunidades para unir o conhecimento tradicional ao conhecimento científico. Nós, das comunidades tradicionais, tratamos diversos casos da Covid-19 com a nossa medicina. E a medicina tradicional tem muito a contribuir com o conhecimento científico, até porque a ciência e todos os tipos de medicina vêm do tradicional. Tudo é extraído da natureza.
AUPA – No Amazonas, a primeira pessoa vacinada no estado foi Vanda Witoto, uma mulher indígena. Que análise você faz do uso político da imagem do indígena neste momento de pandemia?
Samela Sateré Mawé – A Vanda foi vacinada por ser técnica de enfermagem e indígena, não só por ser indígena. O movimento fez parecer que o governo prioriza a vacinação de indígenas quando isso não é verdade. A vacinação está sendo feita apenas em territórios indígenas e nas aldeias. Nós, que vivemos em Manaus e nas zonas urbanas, não recebemos vacinas e não estamos no Plano Nacional de Vacinação. Esse discurso político de vacinar indígenas repercutiu não só no Amazonas, mas em vários estados do Brasil. Há uma falsa sensação de que os indígenas vão se vacinar primeiro.

Há um impacto positivo por conta da visibilidade que os povos indígenas estão ganhando, mas sob um pretexto errado. Essas questões até aumentaram discursos e questionamentos sobre estereótipos. Agora estamos tentando desmistificar um pouco da imagem errada que as pessoas têm sobre os indígenas e sobre a vacinação.

AUPA – Por que ainda é tão difícil desconstruir estereótipos sobre povos indígenas, mesmo em um país tão diverso como o Brasil?
Samela Sateré Mawé – Isso é muito difícil, porque perpassa gerações. O processo colonizador foi tão forte e tão marcante que as pessoas ainda não querem nem procurar saber sobre sua cultura, porque ainda tem isso [os estereótipos] enraizado em suas vivências. Desde criança foram ensinados que o “índio”, como eles falam, é um ser preguiçoso, sem alma. Dizem: “Nunca vi índio usando isso ou aquilo…”. A verdade é que nunca nos viram tal qual somos, como queremos ser vistos.
Estudantes da Educação Infantil, dos Ensinos Fundamental, Médio e Superior permanecem sem saber sobre a História dos povos indígenas, sobre a História do nosso país. O processo colonizador ainda é romantizado, narrado como a “descoberta do Brasil”. A verdade é que terras indígenas foram invadidas, populações foram dizimadas, mulheres foram estupradas e houve um processo de miscigenação bruto. Precisamos reformular o Plano Nacional de Educação principalmente nas áreas onde se discute a História do Brasil.
AUPA – Muito se fala em Economia Verde e investimentos voltados à Amazônia e, ao mesmo tempo, percebe-se a propaganda destas ações, não necessariamente efetivas. Como você vê esta relação considerando a responsabilidade social necessária que o Poder Público, a sociedade civil organizada e os investidores devem ter?
Samela Sateré Mawé – Todos (Governo, sociedade civil e investidores) precisam ter responsabilidade com o nosso bem material e imaterial, que é a floresta amazônica. Em todo o planeta, muitas florestas já foram dizimadas. O Brasil possui uma das maiores áreas de floresta do mundo, com grande contribuição para a regulação do clima global. O impacto em mudanças climáticas é um dos fatores que reforça a necessidade do compromisso de todos.

AUPA – Enquanto a agenda de governo brasileira desfavorece populações indígenas, movimentos como o Fridays for Future ganham espaço em fóruns globais. Como você observa essas contradições no contexto da luta por direitos indígenas?
Samela Sateré Mawé – As organizações governamentais não se preocupam com a cultura e com a diversidade, não respeitam o Artigo 231 sobre povos indígenas, que garante o nosso direito à demarcação da terra, à nossa organização social, assim como nossa língua, cultura e tradições. Ainda somos vistos como um “empecilho ao avanço”, graças à visão ainda eurocêntrica sobre o que é cultura e desenvolvimento, não levando em consideração o que é prioridade para nós: a floresta, a cultura, a língua e nossas particularidades. Vale destacar que os movimentos de jovens ativistas, como o Fridays For Future, conseguem ter mais voz e força. Por isso que a Greta [Thunberg] diz: “Ninguém é pequeno demais para fazer a diferença”. E, se o governo não faz, a sociedade civil vai lá e tenta fazer.

Aupa: Estamos no meio de uma crise humanitária global, agravada também pela pandemia – embora existam diversas outras doenças crônicas em livre disseminação, pautadas há décadas pelo movimento indígena, como desmatamento, crise climática e esgotamento de recursos naturais. Qual é o papel do Governo, das empresas e da sociedade civil nesse contexto?
Samela Sateré Mawé – O governo tem total responsabilidade de tentar conter essas doenças e manter a biodiversidade do país e a cultura dos povos indígenas, só que não o fazem, principalmente o atual Governo, que tem essa política genocida. Nós, povos indígenas, estamos sendo invisibilizados há muitos anos e, neste ano, estamos exigindo e lutando pelos nossos direitos, porque tudo o que é nosso está sendo tomado de nossas mãos.
As empresas devem investir em mais ações que não agridam o meio ambiente, preocuparem-se com a floresta, os rios e com a redução de emissão de dióxido de carbono (CO²), além de levarem em consideração a fauna, a flora e outras riquezas que são deixadas de lado no momento da compra e exploração de grandes lotes de terra.
A sociedade civil tem o papel de cobrar a transparência e efetividade de leis de combate a crimes ambientais. E todos devem pensar em contrapartidas para povos indígenas, ações que busquem amenizar todos os impactos causados às populações tradicionais que dependem diretamente da floresta e do meio ambiente.
Ao longo deste mês, a Aupa promove – no site e nas redes sociais – o especial #AupaMulheres. Serão conteúdos com diversas vozes de protagonistas do ecossistema propondo reflexões sobre a atuação e os obstáculos no setor.
No IGTV, o #SigaEssasMulheres traz cinco líderes, nos mais variados pontos de vista do campo, em um debate sobre um mundo mais igualitário.
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