Um dos sentimentos mais angustiantes da pandemia é não saber quando ela irá acabar. As previsões viram conjecturas, já que muitas forças contrárias se impõem às ações de combate à doença e potencializam a letalidade do vírus. Falta vacina, faltam leitos, faltam decisões acertadas e o reflexo dessa precariedade é um tapa na cara do país — 278.327 mortos por Covid-19, até o fechamento desta reportagem. Uma tragédia anunciada, tão triste quanto vergonhosa.
Desafiando todas as dificuldades, as organizações e suas redes de lideranças deram às pessoas desassistidas apoio para sobreviverem à maior crise sanitária dos nossos tempos.
Projetos como o Mães da Favela, da Central Única das Favelas ( CUFA), e o Corona no Paredão, da Gerando Falcões, levantaram recursos, conseguiram alimentos, itens de primeira necessidade e internet gratuita para famílias em milhares de favelas pelo Brasil. Usaram reconhecimento facial, distribuíram chips e cestas digitais para conectar às mães aos serviços essenciais e seus filhos à possibilidade de assistir aulas a distância.
As ONGs deram uma demonstração de criatividade e, sobretudo, competência. Elas têm voz de longo alcance, são organizadas e trabalham em rede e ,assim, garantem capilaridade. Para firmar parcerias, negociaram com empresários, instituições, Terceiro Setor e profissionais de diversas áreas.
Mostraram do que são capazes e a nobreza de suas ações acabaram por denunciar a omissão de governos.
“A pandemia escancarou a obscena desigualdade brasileira. Logo de cara, caiu por terra a fake news de que o Coronavírus era democrático, que infecta igualmente ricos e pobres. Os anticorpos sociais das favelas e das periferias são infinitamente menos poderosos do que os da classe média e dos ricos”, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
De fato, uma coisa é fazer distanciamento social em 100 metros quadrados, com a geladeira cheia, reserva no banco e condição de trabalhar de forma remota. Mas, questiona Meirelles: como ficam as famílias inteiras que dividem espaços minúsculos?
“Só não houve convulsão social nos primeiros meses de pandemia por duas razões: o arraigado senso de solidariedade que existe nas favelas – ‘se eu tenho comida, meus vizinhos não passam fome’; e porque, de maneira nunca vista, a iniciativa privada se uniu às ONGs que atuam nesses territórios, e ambos trabalharam para fazer chegar rapidamente doações à população”.
A realidade do prato vazio
Sem dúvida, a solidariedade despertada inicialmente foi o efeito colateral bom da pandemia. Mas, os brasileiros continuam sentindo na pele as perdas irreparáveis desse momento — sejam de entes queridos ou de trabalho. Sendo a pele preta, a mais impactada.
Mesmo com toda a mobilização das organizações, a pesquisa “A favela e a fome” ainda revela falta de comida no prato.
Realizada pelo Instituto Locomotiva, em parceria com o Data Favela e a CUFA, ela confirma a importância que as doações representaram durante o primeiro ano da crise sanitária. No levantamento, oito em cada dez entrevistados afirmaram que não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar contas mais básicas, caso não tivessem recebido a doação.
Para agravar o problema, passado um ano com uma força-tarefa 24 horas por dia, sete dias por semana, aconteceu o que era previsto: o fôlego caiu e a onda de sensibilização perdeu a força. Mas as necessidades continuam.
Como lidar com o sofrimento provocado pelo avanço da Covid-19, somado à marca dos mais de 13 milhões de desempregados?
“Nunca paramos, ainda estamos aqui lutando. As doações vão diminuindo, porque as pessoas precisam retomar suas vidas, entender o que está acontecendo e saber o que podem doar e o que não podem. Por isso, estamos lançando o Mães da Favela 2 [sequência do projeto de doação de cestas básicas físicas e digitais] para dizer, nas entrelinhas, que continuamos e que precisamos das pessoas, já que a pandemia não acabou”, conta Geovana Borges, presidente estadual da CUFA (SP).
Paulo Rogério Nunes, cofundador e CEO da aceleradora Vale do Dendê, de Salvador (BA), também observa que a forte onda de apoio às organizações sociais, que ocorreu no início da pandemia, caiu.
“Infelizmente, nesse momento, os apoios estão se enfraquecendo, e isso é muito grave. Há uma falta de compreensão do mercado e também do setor público de que as lideranças sociais fazem um trabalho importante e único, no sentido de mediar situações sociais e estar conectado com a ponta”, afirma.
Além da cesta básica
A informação é um alimento precário na favela. Nas palavras de Geovana, a Covid-19 é um vírus da classe média.
“A classe média sabia que o novo coronavírus estava chegando; a favela, não. Na favela, era um boato, talvez uma fake news. A verdade é que, na grande maioria das casas, existe um déficit de eletrônicos. Até televisão. Durante a pandemia, conversei com uma menina que não tem geladeira em casa. Então, há esse déficit. E estudar é uma forma de evitar um pouco da desinformação que ainda existe com força”, conta a presidente estadual da CUFA (SP).
Renato Meirelles afirma que o legado da pandemia será trágico para jovens das populações mais vulneráveis, pois boa parte deles está fora da escola desde o início da crise. “Ensino remoto depende de conexão de qualidade, assim como de computador e smartphone com pacote de dados, tudo o que eles não têm. O saldo dessa lacuna educacional será mais desigualdade”.
As ONGs sabem disso. O projeto da CUFA foi feito considerando os alunos e as mães que já tiveram seus chips entregues no território, e que precisam que seus filhos estudem.
Para atravessar a barreira da exclusão digital evidenciada na pandemia, a Gerando Falcões foi atrás de internet patrocinada e doação de celulares. Nina Rentel, diretora operacional da Gerando Falcões, conta: “Começamos a olhar mais para essa questão da inclusão digital durante a pandemia. Criamos o aplicativo Gerando Educação e disponibilizamos oficinas, matérias e vídeos. O aluno navega nesse app sem gastar internet. Queremos que essa interação continue mesmo após a volta às aulas”.
Repensar as Políticas Públicas
Cedo ou tarde, a pandemia vai acabar e a pergunta é: como ajudar as pessoas que ocupam mais de 5,1 milhões de domicílios em favelas no Brasil e vivem em situação de pobreza, além das comunidades em situação de vulnerabilidade, quando uma nova realidade surgir?
“Antes mesmo da pandemia, a favela já vivia em isolamento social. Poucas pessoas conhecem a realidade de uma favela. Por isso é tão importante fazer uma reversão, quando se fala de Políticas Públicas. Quer dizer, pegar o território, avaliar e entender a sua necessidade. Depois, buscar quem conseguirá levar para aquele território a importância que ele pede. Nós, como uma organização, precisamos de uma visão do morador da favela. Cada favela tem sua particularidade e precisamos olhar para isso. É o que acreditamos e queremos seguir”,
explica Geovana Borges, presidente estadual da CUFA.
Foi esse pensamento que inspirou a CUFA a criar o Mães da Favela On, que entregou chips para essas mulheres por um período de seis meses. “Com a conectividade, a própria mãe vai decidir o que vai ser melhor naquele momento: abastecer o celular com 10 reais ou comprar um pacote de arroz, pão e leite”.
Vale lembrar que trata-se de uma pandemia que exige uso de álcool gel e máscara, mas existem favelas que não têm água. Sem conhecer essa realidade, os moradores recebem doação de máscaras e álcool, mas não têm como lavar as mãos. Este exemplo aconteceu em uma favela no bairro da Brasilândia, na Zona Oeste de São Paulo, segundo Geovana Borges.
Em outras palavras, saber o que está faltando em um território é o ponto inicial, da mesma forma que parar de ver as Políticas Públicas como um favor. Todos pagam impostos, cumprem com seus deveres e querem seus direitos.
O futuro é em rede
Se a percepção quanto às necessidades e potencialidades das favelas mudará depois do tsunami de Covid-19, o tempo dirá. O que tem pra agora é a sensação de que os parceiros estão mais abertos. Nina, da Gerando Falcões, observa um movimento dentro das empresas de querer fazer parte de uma causa.
“Temos visto mais empresas querendo realmente entender a causa e trabalhar de forma mais integral na solução. Alguns parceiros que estão conosco em projetos maiores, querem atuar com diversidade dentro da empresa, com empregabilidade e outros. Esse tem sido um movimento muito legal, por possibilitar que possamos fazer uma solução em conjunto, que faça sentido dentro dos dois universos”, descreve.
Essa busca para entender melhor como é a vida nas favelas, feita pela iniciativa privada, também é identificada pela CUFA.
“Por exemplo, em São Paulo, as pessoas conheciam as favelas de Paraisópolis, Heliópolis e Brasilândia. É como se não houvesse outra favela. Mas, principalmente no setor privado, as pessoas estão mais abertas a entender mais e isso gerará mais oportunidades para a favela. Na contrapartida, temos a sensibilidade de entender o que a empresa quer e tem para oferecer e como podemos encaixar isso dentro do território ”, avalia Geovana.
A liderança se faz na favela
Na rede de solidariedade contra a Covid-19, não houve ator mais importante do que o líder dentro de seu território. A operação da CUFA para garantir que as quase 20 milhões de toneladas de alimentos chegassem à ponta só deu certo por causa da presença das lideranças.
“Quando recebemos os donativos dos parceiros, fazemos a divisão entre as favelas. O líder separa tudo o que precisa e leva para o território dele, faz a entrega, a mobilização e a prestação de contas. A última etapa é o alinhamento feito conosco. Este líder presta contas nas redes sociais. Os parceiros seguem e vêem que é da CUFA X, da CUFA Y”, explica Geovana.
Muitas das pessoas que eram assistidas pela CUFA se tornaram grandes líderes. Na pandemia, pessoas que perderam o emprego, agora estão voltadas a entenderem o que está acontecendo no território. “Quando me perguntam se é difícil formar líderes, respondo que eles já estão lá. Todo líder se transforma conforme o tempo. Vai se descobrindo, aumentando as conexões e fazendo mais por sua favela”, comenta a presidente estadual da CUFA (SP).