Oi, tudo bem? Espero que este texto lhe encontre saudável físico e mentalmente, alimentado e hidratado.
Mas, olhe, precisamos falar sobre as emergências econômicas – sem falar sobre elas não tenho como lhe contar quem são os “nanos”!
Recolhimento, quarentena e estabilidade econômica são agora privilégios no Brasil; é assim em 2020, bem como foi em 2019 e nos anos antes deles… Existe, hoje, um grupo de pessoas em uma dimensão de vulnerabilidade neste país, muito além do básico. São os nanoempreendedores ou apenas “nanos”. Você, talvez, nunca os chamou por este nome, mas eles estão aí, fornecendo serviços e produtos, gerando empregos, impactando (e muito) a economia local e, como cidadãos, consomem e pagam impostos. Digo isso porque muitos desses nanoempreendedores figuram nos dados da informalidade das pesquisas, por isso não são contemplados em políticas de fomento – já era assim antes da crise, quem dirá agora…
Mas o que a economia da “formalidade” se esquece é que eles, antes de serem empreendedores, são cidadãos que pagam luz, água, telefone e internet. São também consumidores que compram produtos tributados, ou seja, a carga tributária deles, não contemplando em suas operações, é retribuída nos seus acessos a serviços e consumo diários. Outra coisa massa dos “nanos” é que eles não estão sozinhos: são também responsáveis pelo sustento de uma grande parcela de famílias da periferia, onde a maioria tem mulheres negras como mantenedoras.
Estou acompanhando, de forma coletiva, ao lado de outros atores e lideranças negras e periféricas do ecossistema de inovação e impacto social no país, os avanços da epidemia do COVID-19, e os impactos gerados agora e também a médio e longo prazos para este público dos nanoempreendedores. Acredito que nunca estivemos tão próximos da possibilidade de uma regressão agressiva do empoderamento econômico (ainda abaixo do que poderia ser) de grupos e territórios vulneráveis, em específico a população negra, parte da qual a maioria de nanos se autodeclara.
Mas você pode dizer:
“João, há diversas ações, campanhas e também mobilizações das esferas pública e privada, além da sociedade civil, com foco no emergencial – ‘colocar feijão na lata’ destas pessoas”.
Nenhuma crítica às mesmas. Elas têm seus méritos e suas urgências, mas o convite neste texto é para reflexão da perspectiva multidimensional de uma crise que afeta toda a sociedade, mas em especial a forma como reagimos a ela. É um momento ímpar e que testa a forma como praticamos a empatia. Nossos entendimentos sobre as reais necessidades de públicos em maior situação de vulnerabilidade devem ser ampliados e colocados à prova, frente às certezas que tínhamos há duas ou três semanas.
Apesar das cestas básicas, fica sempre a pergunta: e depois?!
Vamos fazer um pequeno exercício sobre um dos perfis dos nanos: imagine você, uma mulher negra, mãe solo de dois filhos, vivendo em uma favela das grandes metrópoles do Sudeste. Até semanas atrás, seu maior desafio era o equilíbrio das contas e da qualidade de vida, limitadas ao recebimento de um salário mínimo (talvez algo próximo de dois) oriundo de alguns serviços de faxina e/ou de um pequeno empreendimento na área de alimentação. Imagine ainda que para chegar ao ponto de equilíbrio do orçamento familiar, às vezes, ainda fosse exigida uma ginástica financeira para deitar a cabeça no travesseiro de forma tranquila. O orçamento desta nanoempreendedora era composto por despesas que não cabem em uma cesta básica de alimentos. Estamos falando aqui de necessidades de acesso a serviços como água, luz, internet, e (por que não?), lazer e entretenimento. Esta era a vida de sonho possível dos “nanos”!
Como diz a canção “Comida”, dos Titãs: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte…”.
O COVID-19 representa uma epidemia global, é preciso recolhimento e quarentena. Mas, falando a partir da perspectiva dos nanoempreendedores do Brasil, isto ainda é um privilégio. Ele representa também a regressão de uma mobilidade social, na perspectiva econômica, de uma parcela da população pertencente a uma força de trabalho empreendedora, que existe formal e informalmente, movimentando e fortalecendo a economia local, impactando diretamente a economia nacional. Seja por meio do consumo, seja por meio da oferta de produtos e serviços nas cadeias da Economia Criativa, como gastronomia, beleza e construção civil. E vale lembrar que, em sua maioria, são pessoas negras.
Gente, que fique claro: cestas básicas são importantes! Mas a manutenção do empoderamento econômico desta grande parcela da população também é. Reforço: não se trata de uma crítica às ações assistenciais de emergência, mas, sim, um convite a dividirmos esforços e recursos para atender outras demandas que as emergências econômicas trazem. Neste ponto, devemos nos unir na proposição e na execução de soluções.
A sugestão aqui é para refletir: qual o seu melhor lugar nesta crise? Se você tem capital social, financeiro e de rede, eles também devem estar empregados no atendimento a essas outras urgências. Se formos pensar economicamente no local, lembrem que quem monta cestas básicas hoje são empresas médias e grandes, e elas não estão dentro destes territórios vulneráveis – seja gerando emprego ou fomentando a economia local. Resumindo: a médio prazo (ou, talvez, curto), cestas básicas quebram mercadinhos da favela, é simples fazer a conta e a análise de cenário.
Sei que, às vezes, a distância destas realidades nos leva a escolher o mais simples, a solução mais óbvia. Não estou julgando e lhe aconselho também que não faça isso consigo ou com outros que seguem por esta linha de raciocínio.
“Beleza, João, lhe ouvi (li) aqui… Refleti… Mas, e aí, onde estão as soluções?”
A certa? Eu não sei, sinceramente. Mas as necessárias e urgentes temos muito o quê conversar. Principalmente, sobre a qualidade e a assertividade do investimento social e de impacto no Brasil.
Muito antes de Covid-19, vários atores do ecossistema de empreendedorismo negro e de impacto social se uniram para atuar de forma coletiva no território nacional. Assim, somamos forças para fundar a Coalizão ÉDITODOS, liderada pelas organizações: Afrobusiness, Agência Solano Trindade, Feira Preta, Vale do Dendê e nós, do FA.VELA. A Coalizão nasceu em 2017, devido a nossa participação na Força Tarefa de Finanças Sociais (atual Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto), liderada pelo Instituto de Cidadania Empresarial (ICE). Uma iniciativa única dentro do ecossistema de impacto social no Brasil. Temos como agenda o enfrentamento ao racismo estrutural, que influencia, diretamente, a mobilidade social, o acesso a recursos e também a qualidade de vida da população negra e outros públicos vulnerabilizados. Atuamos com o fomento ao empreendedorismo, à inovação social e à economia criativa, articulando parcerias entre os setores público, privado e social, para a construção de soluções e projetos de impacto efetivo, fortalecendo ainda o advocacy por políticas públicas para garantias de direitos destas populações.
Usando esta inteligência coletiva, lançamos nesta semana nossa estratégia de captação de recursos para um fundo emergencial de doações financeiras focado nos “nanos”. Vamos atuar fortemente no advocacy da transferência de renda para a ponta. Precisamos minimizar os impactos no empoderamento econômico desses núcleos familiares! A retomada econômica do país, não pode ser construída sem pensar nestes agentes econômicos.
Estamos abrindo diálogos com o setor privado, institutos e fundações, para os primeiros investimentos. Apesar de estarmos apenas no início dos desafios, com o avanço das medidas de isolamento social, a maioria das empreendedoras e dos empreendedores da base, com muitos negócios ainda analógicos, precisarão de apoio para se reinventar. Por isso, em paralelo às doações financeiras emergenciais a fundo perdido, estamos revendo nossas estratégias como fomentadores destes ecossistemas periféricos, ampliando as nossas ofertas formativas nos meios digitais e tornando-as cada vez mais acessíveis.
Investidores, doadores e conectores: continuem firmes nas ações emergenciais da assistência básica, mas se abram ao diálogo das emergências econômicas para além do entendido, comumente, como básico. E se precisar de ajuda para isso, nossa inteligência está a sua disposição. Venha falar com a gente!
Sigo daqui, na resistência, construindo pontes e comprometido com soluções coletivas.