Experimento nosso mundo em suas múltiplas dimensões e complexidades e percebo que faz tempo sinto o peso dessa ausência. Ao aprofundar mais essa reflexão me surpreendo com o fato de que essa palavra já quase não se usa e que, em alguns fóruns, chega a ser ridicularizada. Em um papo de boteco com um amigo esta semana escutei: “Utopia é coisa de quem devaneia, luxo de quem não tem o que fazer. O que vale é o mundo pragmático.” Foi um choque. E ao mesmo tempo um gatilho para um aprofundamento.
Será que é isso? E qual o impacto disso na nossa realidade diária e no mundo que criamos?
Confrontei essa afirmação com a referência mais próxima que conheço: minha própria vivência. E me dei conta que minha vida é essencialmente conectada com utopias. Minha identidade como empreendedor, quem sou e como sou, é totalmente lastreada em utopias. Sem essa palavra na minha existência não sei como me definir. Percebi que é por causa da utopia que me levanto todos os dias e faço escolhas e renúncias e que diante de grandes desafios, ela é sabia conselheira. É verdade que muitas vezes não alimentou meu bolso, mas jamais deixou de alimentar minha alma, o que sempre julguei ser essencial para ter um bolso sustentável. Talvez seja apenas um romântico sonhador. Ah, mas se for isso, que esse sonho romântico não se acabe porque ele faz da minha jornada algo que eu lutaria mil batalhas para reviver.
Imerso nesse caldo de reflexões e sentimentos, me vi diante de uma pergunta mais central, que entendo estar na raiz dessa questão: Com o que verdadeiramente nos importamos?
Essa pergunta grande foi a que me forjou como empreendedor focado em impacto social. Ficar diante dela de forma honesta exige uma grande energia, pois todas as nossas reações interiores tentam nos afastar. Respostas rápidas, superficiais, normalmente apenas um jeito veloz de escapar do momento. Tentamos evitar esse olho no olho na frente do espelho, com um certo temor de encontrar a semente da incoerência que existe em nossas vidas, manisfestas na distância entre intenções e ações, justificativas, omissões. Comigo foi assim. Um processo sofrido para manter o olhar sem desviar. E aceitar o que eu via. Hoje percebo que foi a habilidade de sustentar esse olhar firme que me ajudou a forjar meu Ser empreendedor e a minha rica jornada de escolhas e renúncias.
Qual é a transformação que você deseja realizar
Qual a relevância disso para quem deseja empreender? Simples. Não há empresa sem modelo de negócio. E não há modelo de negócio sem empreendedor. E o tipo de empreendedor que você é e será depende essencialmente das grandes perguntas que você se faz. Qual a sua utopia? Que transformação você deseja protagonizar? De que sonhos o seu futuro está grávido? Sem isso, não há empreendedor. Pode haver um empresário. Mas não há um empreendedor.
No campo de negócios de impacto social há solo fértil para empreendedores utópicos. Há adubo rico para sementes grandiosas. É nosso dever como empreendedores de impacto nutrir esse solo e ajudar a que floresça, polinize, expanda. Nosso mundo precisa disso. Urgente. Estamos órfãos de empreendedores utópicos! Serão esses os que levarão nosso futuro a um patamar de dignidade, felicidade, sustentabilidade e prosperidade como os existentes nas mais elevadas utopias.
Desenvolver um MVP, criar um modelo de negócios, abrir uma empresa, operar um mercado, tudo isso é necessário para o sucesso, mas não suficiente. Nos últimos 20 anos, tanto ao empreender, como ao investir e acompanhar empreendedores, aprendi que empreendedores utópicos são essenciais.
Com o que você se importa? Qual o futuro que você quer criar? O que precisa mudar para começar já?
Nosso mundo precisa da sua utopia!!! Descubra sua utopia. Ame sua utopia. Depois faça o que quiser para colocá-la em prática porque o que floresce no amor só pode dar em coisa boa.
Negócios rurais podem ser, ao mesmo tempo, sustentáveis e produtivos, com ambiente equilibrado. Agora é “criar qualidade de vida vivendo com a terra”, conta Flavia Altenfelder Santos, cientista social e mulher à frente da Fazenda Malabar. Ela e o irmão, Felipe, engenheiro ambiental, recuperaram uma antiga propriedade da família para colocar a agrofloresta como sistema de produção à prova, apostar na inteligência ecológica e ver os resultados.
Os chamados sistemas agroflorestais, ou SAFs, têm como base conceitos e métodos ancestrais que, sistematizados no contexto atual, trazem soluções socioambientais concretas. A obra do agrônomo Jorge Vivan, ou o artigo do Departamento de Estudos Sócio- Econômicos Rurais (Deser) estão entre pesquisas que observam que esse processo produtivo deixa de ser alternativo e passa a ser estratégia de desenvolvimento nas comunidades.
Na pesquisa brasileira feita por Mauricio Hoffmann com dez SAFs, ao longo de dez anos, calculou-se que todos possuíam, em valores de produção anual, a média nacional para agricultura. Já na pesquisa do americano David Pimentel foi constatado que, além da perenidade, o modelo agroecológico utiliza 30% a menos de energia, água e nenhum pesticida. Um dos fatores que, na verdade, possibilita a perpetuação e o crescimento exponencial fluído e biodiverso, como é a dinâmica da natureza.
Refazenda: a trajetória da Fazenda Malabar
A história da família de Flavia é de transição, mas reiniciada do zero, ou seja, um processo de transformação da relação com a terra. Numa fazenda onde foi há anos lavoura de cana, agora, o novo ato é simples: “Manter o solo saudável, ao invés de só tirar coisas e empobrecê-lo”, comenta Flávia. O oposto do que faz o modelo tradicional que se autointitula como único agronegócio. “Um novo modo de plantar é um novo modo de encarar a vida, um novo modo capaz de criar toda uma nova lógica”, define Flavia.
Equipe do Fazenda Malabar e o sistema de Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA): quem compra garante uma encomenda mensal das cestas de alimentos orgânicos. Crédito: Divulgação.
A Fazenda Malabar começa a aprender na prática com um sistema de horta agroflorestal, que produz atualmente de 100 a 110 cestas de vegetais e hortaliças por semana. “São 105 famílias que a gente alimenta com 2,5 hectares de terra”, conta ela. No último agosto, depois de um ano e meio de trabalho, fecharam as contas “no justo e no fino”. A entrada de capital é de aproximadamente R$25 mil reais ao mês, sobrando apenas R$ 2 mil reais para fundos e 13º salário dos funcionários.
Por lá, o trabalho coletivo é mais leve, a proposta é fomentar outra forma, desejam o “bem viver” (princípio indígena latino americano) moderno: usam das tecnologias, querem ter tempo livre e poder viajar. Mas Flávia questiona: “Por que quem vive no campo tem que ter uma vida pouco digna? Como assim a gente criou um sistema que faz com que quem alimenta o mundo tenha essa vida?”.
Então a meta agora é aumentar os salários dos seis membros da equipe. Todos jovens que encontraram uma maneira de voltar ao campo ou que vão para lá pela primeira vez, os neorrurais. Todos participam da gestão e, entre eles, a sustentabilidade econômica é discutida a todo momento. É princípio, por exemplo, que todos ganhem o mesmo, inclusive a dona da propriedade.
“O que traz resiliência da natureza e do mercado são todas as ciências e práticas de manejo que usam menos insumos e mais processos. O mercado de commodities está fadado a desaparecer por obsolescência. ”
O modelo de circulação de produtos que utilizam é o sistema de Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA). Quem compra garante uma encomenda mensal das cestas. Consumidores passam a se relacionar diretamente com os produtores de seus alimentos. Com todos os ativos envolvidos, o interesse mútuo se desenvolve e o ciclo todo tende a se transformar.
Para o próximo ano, a equipe da Fazenda Malabar pretende aumentar a diversidade de produtos, de consumidores e outros atores de impacto ambiental positivo. Financeiramente, o objetivo é diversificar os tipos de entrada de caixa. Como fazem outros negócios e grupos do ramo, por exemplo, com o beneficiamento em semi-industrializados e industrializados, o ecoturismo pelo entorno, ou a educação – o começo de tudo na abertura de espaços.
Práticas como a da Fazenda Malabar questionam a cadeia produtiva monocultural. Um modelo que, ainda que disponibilize alimentos à custos razoavelmente baixos, com foco no mercado exterior, prejudica a base da cadeia, os chamados “serviços ecossistêmicos”. A apropriação e desmatamento de áreas que geograficamente são limites de biomas; a perda dafertilidade; a contaminação das águas e do solo por insumos externos, são alguns fatos. E somos o país quemais consome agrotóxicos do planeta.
Marcella Lopes, economista e agroecologista, explica: “Se a gente entender que [os serviços ecossistêmicos] são fundamentais pra vida das pessoas, e pro funcionamento das coisas, da sociedade como um todo; que todas as atividades econômicas de alguma forma são dependentes; então é intrínseco, que o impacto social depende da preservação do meio ambiente”.
Ilustração: Fernanda Sanovicz
SAF enquanto modelo de negócio
Esse é um debate que vem sendo feito no mundo todo desde essa oposição entre crescimento econômico e não-destruição da natureza. Mas teve como marco de mudança de pensamento o ano de 1972, quando aconteceu a primeira conferência da ONU de Meio Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo, na Suécia. O caminho é largo até chegar à Agenda 2030, meta internacional pelo desenvolvimento sustentável. No Brasil, um viés para ver a problemática é por meio da recente Coalização Brasil Clima, Florestas e Agricultura, onde se pauta conceitos congruentes como o de Economia Circular.
Entre tantos pesquisadores, técnicos, grupos, organizações e associações que trabalham dentro deste outro paradigma de produção, estão Valter e sua parceira Paula com a iniciativa Preta Terra, projeto com 15 anos. Há onze meses, o Preta Terra conseguiu parceria com o instituto de pesquisa WRI para atuar nas regiões mais remotas do Pará. A dupla tem como objetivo a aplicação da agrofloresta junto com os produtores, em qualquer situação viável cultural e economicamente para todos. “São sistemas modulares, replicáveis, aderentes e elásticos, que trazem a inteligência do sistema”, define Valter.
“O que traz resiliência da natureza e do mercado são todas as ciências e práticas de manejo que usam menos insumos e mais processos, entendendo e mimetizando na produção o que natureza faz ”, conclui Valter. “É esse o verdadeiro modelo que vai tomar todo o sistema produtivo e a matriz produtiva mundial. O mercado de commodities está fadado a desaparecer por obsolescência. ”
Em uma das experiências da Preta Terra, um plantio de base de mandioca, que antes era feito pelos produtores no sistema de corte e queima, passou a ser feito como agrofloresta. Dessa forma, aumentaram sua rentabilidade de R$ 6 mil/ha para mínimo de R$ 28 mil/ha. Às vezes, no primeiro ano de transição, pode haver uma queda, e os ciclos são mais curtos. Mas a produtividade sempre se multiplica, e a rentabilidade é exponencial.
O modelo agroecológico utiliza 30% a menos de energia, água e nenhum pesticida.
Rafael Lima vem estudando os modelos do campo e presta consultoria de projetos com a Agrofloresta do Futuro – Empreendendo com a Natureza. Segundo ele, o sistema agroecológico tem grande redução de risco econômico e crescente independência da macroeconomia. “É o único sistema que pode recuperar o meio ambiente e gerar renda, ao mesmo tempo”, afirma, “de cinco anos para cá, se espalharam em 300%, 400% as iniciativas que estudam e procuram aplicar a agrofloresta sintrôpica”.
A inteligência do sistema está exatamente em entender as condições do local, entender tudo o que permeia; assim o próprio sistema e o agricultor fazem as mudanças necessárias ao longo do processo. A complexidade da natureza é a solução, e não o problema. Foi assim que a agroecologia foi praticada pelos povos amazônicos mais antigos, há cerca de 4 mil anos, e contribuem até hoje para o desenvolvimento sustentável da maior floresta tropical do mundo.
Já pararam para pensar quais são os fatores que fazem com que o número de negros que desistem dos estudos é maior? A pergunta é complexa, mas há algumas dicas: racismo, vulnerabilidades sociais e ausência de contato com o repertório que fale sobre o próprio aluno e seu território (apesar da existência da lei 10.639, desde 2003). A não representação também é um tipo de violência, por vezes, naturalizada em nosso cotidiano.
Pensando nestes aspectos, entidades como a UNEGRO e a UNEafro atuam com enfoque social para equidade racial e valorização da pauta afro-brasileira e de modo que suas matrizes busquem promover a autoestima da população negra por intermédio de atividades culturais e de formação. Trata-se de pensar propostas de equidade e progresso a partir do respeito às diferenças étnico-raciais, sobretudo.
UNEGRO
A União de Negros pela Igualdade (UNEGRO) completou 30 anos, em 2018, e teve sua fundação em Salvador, na Bahia. Hoje, há núcleos espalhados em 26 estados. Cícero Gomes, de 44 anos, é professor de História e presidente da UNEGRO Mogi das Cruzes/SP. Segundo sua percepção, com cinco anos de atuação no município, é notável a diferença deste trabalho. “Já podemos perceber o impacto e a promoção da igualdade racial que se faz, a duras penas e lentamente, mas que já dá seus frutos”, conta ele.
Com a UNEGRO junto de outras entidades dos movimentos sociais houve, por exemplo, a criação do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR), em 2013. “Também contribuímos com a formação da Associação Axé Mogi, que representa as religiões de matrizes africanas. Desde antes da fundação oficial da UNEGRO, em Mogi das Cruzes, já atuávamos no sentido de trazer visibilidade para essas práticas religiosas contribuindo, assim, para a superação do preconceito sofrido por tais religiões”, afirma. A UNEGRO Mogi conta, hoje, com 22 pessoas em sua equipe.
Como o racismo e seus efeitos atingem a sociedade por um todo, o público-alvo das atividades da UNEGRO são todos aqueles que desejam participar delas. “Claro que, como vítima direta desse crime, temos, preferencialmente, a responsabilidade com o povo negro, oferecendo-lhe todo apoio para a tomada de consciência de seus direitos e o esclarecimento para que possa perceber mais facilmente quando tais direitos são desrespeitados”, explica Gomes. Tal auxílio é feito com palestras nas áreas de Direito e Saúde, assim como acompanhamento jurídico e psicológico nos casos de racismo.
O empoderamento e a tomada de consciência social são os caminhos que a UNEGRO acredita para combater o racismo. “Superar essa chaga social é um dever de todos, pois é dela, que é uma violência, que advém outros tantos problemas”, comenta Gomes.
“É a educação que nos dará as ferramentas para superarmos as injustiças sociais, a dependência econômica e a dominação política”, pontua Cícero Gomes
Dessa maneira, empoderar quem se encontra à margem da sociedade torna-se de suma importância. Nascem, assim, os agentes de transformação. “É necessário que tenhamos o entendimento de qual é a nossa real condição nessa sociedade. Somos a maioria da população brasileira [54%, segundo o IBGE], mas no que diz respeito a usufruir os direitos somos a ‘minoria’. É preciso definir que papel queremos desempenhar – certamente, não o de pessoas de segunda classe, como tem sido e como querem que continuemos sendo”, enfatiza o professor. “Queremos ser protagonistas de nossa história e isso se dá por meio da educação formal e não formal. É a educação que nos dará as ferramentas para superarmos as injustiças sociais, a dependência econômica e a dominação política”, pontua ele.
A retomada da matriz afro e da ancestralidade é feita dentro das atividades da UNEGRO. O principal evento neste aspecto é o anual As Três Rodas de Resistência Negra no Brasil, realizado sempre no dia 14 de julho, aniversário da entidade. As três rodas são: as religiões Candomblé e Umbanda, a Capoeira e o Samba. Na atividade são homenageadas personalidades desses três segmentos. “São pessoas que contribuem na manutenção dessas atividades que, para nós, representa a nossa ligação com a nossa ancestralidade africana, com o nosso passado, com quem somos”, explica o presidente.
A UNEGRO também trabalha diretamente com políticas públicas. “Por meio de parcerias com escolas estaduais e municipais realizamos diversos projetos, que vão desde a capacitação de professores a oficinas com os alunos. Isso se dá de uma forma muito individualizada, são ações individuais de professores e/ou gestores das unidades escolares que se preocupam com o tema da lei 10.639”, comenta ele sobre a lei que visa a garantia ao acesso à História e à cultura africana e afro-brasileira no Ensino Fundamental e Médio, de instituições privadas e públicas. No geral, entre todas as atividades desenvolvidas pela UNEGRO Mogi, ao longo de seus cinco anos, cerca de quatro mil pessoas foram impactadas socialmente.
Sobre o racismo, Gomes ressalta que “Os índices mais baixos, no que diz respeito à escolaridade, são dos negros, o que afeta diretamente nos demais índices sociais”. Na tradição africana, a raiz e o ensinamento do Sankofa (“volte e pegue”, na tradução em português), que trata de retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro, o professor destaca: “Entendemos que isso é fruto de nosso passado escravista e que a manutenção desses ‘grilhões’ atende a um projeto político, social e econômico de uma ‘elite do atraso’, como diz [o sociólogo, professor e pesquisador] Jessé de Souza – uma elite que tem um pensamento tacanho quando trata do nosso país”.
UNEAFRO
Rodolpho De Vicente Gomes, de 30 anos, é funcionário público estadual e professor/coordenador voluntário da UNEafro Brasil, organização que atende em média 1.600 jovens, por ano, nos 32 núcleos. A UNEafro é uma rede de articulação e formação de jovens e adultos moradores de regiões periféricas do país. “Mais do que trazer esperança e perspectiva de crescimento profissional e pessoal aos jovens, ao auxiliá-los a ingressar no Ensino Superior, os cursinhos populares da UNEafro despertam neles o interesse por questões sociais que os levam, também, ao caminho da autopercepção e da autovalorização na sociedade brasileira”, explica Gomes. O público-alvo da UNEafro Brasil são jovens negros da periferia, em primeiro lugar, e também adultos e jovens que não sejam necessariamente deste perfil. Os 32 núcleos de ações populares atuam espalhados, majoritariamente, no estado de São Paulo, mas também em estados vizinhos, como o Rio de Janeiro.
Quando se dialoga sobre a formação crítica dentro da escola, os impactos são grandes em qualquer classe social, mas especialmente maiores na população negra e periférica brasileira, segundo o coordenador da UNEafro. “Não basta apenas atingir o objetivo mais prático e urgente do acesso ao Ensino Superior. Interessa-nos, mais que tudo, facilitar a esses jovens o acesso à informação e ao conhecimento libertários que possam servir de instrumento para sua construção enquanto seres humanos conscientes das possibilidades de intervenção na realidade”, ensina. Tal movimento extrapola, portanto, os limites da educação formal “Cada vez mais, a educação libertária permeia os espaços da música, do teatro, da dança, da poesia e os cursinhos buscam se inserir nesse contexto de construção de uma construção coletiva e independente de conhecimento”, afirma Gomes.
Temas como a negritude, a história afro-brasileira e a necessidade de emancipação do povo negro no Brasil são tratados como foco no cursinho. No calendário letivo, são organizados dois encontros anuais, chamados de “aulões”, no primeiro e no segundo semestres, com o intuito de reunir alunos de todos os núcleos para apresentações artísticas, aulas coletivas e debates. “Nesses encontros, intensificamos nosso contato e reafirmamos nossas ideias e ideologias”, comenta o professor.
Sobre o racismo, Gomes comenta que “As dificuldades impostas pelo racismo estrutural da sociedade brasileira vão além da negação aos jovens negros do acesso a escolas e espaços de cultura e lazer de qualidade”. Apesar das ações de educação coletiva e novos espaços para expressão, há sempre obstáculos no preconceito e na ojeriza dos racistas, segundo o professor. “Tomemos como exemplo os grupos musicais, religiosos e artísticos, em geral, que trabalham dentro do universo da tradição afro-brasileira, tais como grupos de maracatu, coco, centros de umbanda e candomblé. Além de lutarem por questões materiais, iniciativas e espaços desse tipo, eles precisam enfrentar, a todo o momento, a rejeição ‘natural’ de brancos que os veem como inferiores ou perigosos. O racismo é uma limitação moral e material imposta ao povo negro”, enfatiza ele.
O racismo traz consequências que vão além da questão econômica: ele reflete na sociedade em termos sociais, culturais, históricos – e até mesmo de identidade. Afinal, o fenômeno de brasileiros reconhecendo suas raças e se autodeclarando pretos e pardos é recente. Somente no Censo de 2010 revelou-se que 50,7% dos brasileiros se autodeclaravam pardos ou pretos. E engana-se quem pensa que o racismo é uma pauta exclusiva a negros – ele é um problema a ser debatido e refletido pela sociedade por um todo. E, para fomentar esse debate, a educação continua sendo o principal canal de transformação.
Ao longo das últimas décadas uma série de políticas públicas foram implementadas, de modo a incluir a matriz afro-brasileira a partir da vida escolar. Uma delas é a lei 10.639/2003. Segundo texto da lei, deve-se contemplar nos currículos escolares “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação e de Literatura e História Brasileiras”. A lei foi sancionada para que sua aplicação fosse feita a partir de estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, de modo a tornar obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
Para tal, há uma série de iniciativas do governo, de entidades da sociedade civil e, inclusive, de negócios sociais somam esforços no sentido de promover uma educação para a cultura afro.
A AfroeducAÇÃO é um destes negócios sociais. Fundada há dez anos por Paola Prandini e Cinthia Gomes, a entidade leva formações variadas para escolas e instituições que queiram refletir desigualdades e promover ambientes plurais. Um dos principais eventos organizados pela entidade é a sessão AfroeducAÇÃO de Cinema, no Shopping Frei Caneca, além de consultorias e formação.
A equipe coordenada por Prandini é formada por 8 pessoas, todas voluntárias e, segundo ela, “com igual voz de veto no processo.” As funções dos voluntários variam entre construção e redação de projetos, organização de eventos, pré-produção e produção durante a realização de eventos, oficinas, fotografia, produção de conteúdo. Em entrevista para a Aupa, Prandini avalia a trajetória do negócio e os desafios de tratar com a cultura afro-brasileira na educação.
“hoje, ao menos, é difícil você encontrar uma pessoa que não aceite o fato de que o Brasil é um país racista.”
AUPA | Qual é o público-alvo das atividades que vocês desenvolvem com a AfroeducaAÇÃO?
PAOLA PRANDINI| Prioritariamente, educadores e educadoras de escolas públicas. De qualquer disciplina, de qualquer conteúdo curricular, qualquer idade. A gente entende que a lei 10.639/2003 é transversal, então, por isso, ela precisa impactar geral: desde a criança, de zero a 3 anos, até o EJA, com a Educação de Jovens e Adultos.
AUPA | E qual o impacto que a AfroeducAÇÃO gera nesse público?
PAOLA PRANDINI | A AfroeducAÇÃO colabora com o desenvolvimento profissional desses educadores, mas também com o desenvolvimento deles enquanto cidadãos. Porque, por vezes, aquele conteúdo que o professor vai ter acesso numa formação nossa pode não ser nitidamente replicável com aquela turma na qual ele está trabalhando naquele dado momento. Mas, de qualquer forma, ele tem um ganho quanto pessoa e quanto cidadão e que precisa se tornar vigilante, consciente de seus privilégios e dos seus direitos, seja o cidadão negro ou não.
AUPA | E como você vê essa questão do empoderamento, sobretudo, do jovem negro, por intermédio da educação?
PAOLA PRANDINI | A gente acaba trabalhando muito com a educação formal, porque temos já uma rede estabelecida junto da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Mas, sem dúvida alguma, o nosso trabalho vai além disso. Tanto que, sempre que podemos, ocupamos espaços de educação, inclusive informal, como o cinema, entendendo que o cinema é um recurso pedagógico em potencial. Compreendemos que educação a gente faz o tempo todo e em qualquer lugar e, por isso, estar ou não estar na escola não é condição sine qua non ou indispensável para o trabalho que a gente vai desenvolver. Então, tem momento que sim, a gente está dentro das escolas, mas tem momento que não – e a gente entende que está trabalhando e fazendo educação da mesma forma.
“Não falamos em diversidade, fala-se em valorização da diferença. Não falamos que somos todos iguais, falamos, na verdade, que somos diferentes e precisamos questionar os privilégios.”
AUPA | Como você vê essa escolha de tornar o AfroeducAÇÃO uma negócio social?
PAOLA PRANDINI | A AfroeducAÇÃO existe há dez anos. Desde o princípio a nossa ideia sempre foi essa, a de ser uma empresa com fins sociais. E é um desafio muito grande. Acho que há o lado bom e o lado ruim dessa opção. Por um lado, a gente consegue ter uma flexibilidade, inclusive jurídica, para trabalhar com emissão de nota fiscal. Assim, conseguimos ocupar espaços que, por vezes, exigem de nós esse tipo de estrutura de consultoria e garante uma profissionalização maior daquilo que a gente faz. Mas, por outro lado, estando no Brasil, que é um país ainda onde a regulamentação do setor 2.5 tão precária e jovem, a gente acaba, por exemplo, tendo que pagar imposto como uma empresa qualquer que não tem fins sociais. Às vezes, a gente acaba não podendo participar de alguns editais por serem editais focados em ONGs. Então, ainda é algo a ser melhorado em termos de regulamentação jurídica desses negócios sociais que estão enquadrados neste setor 2.5.
AUPA | Acaba sendo o setor que não tem um lugar: porque ou você vira o 3 ou você vira o 2…
PAOLA PRANDINI | Exatamente. A gente vê um crescimento do setor 2.5 no Brasil, inclusive, muito impulsionado pelo social business nos Estados Unidos. Eu espero que num futuro breve a gente tenha mudanças importantes neste sentido.
AUPA | Quais atividades a AfroeducAÇÃO oferece?
PAOLA PRANDINI | As sessões da AfroeducAÇÃO junto do clube do professor, no espaço Itaú de Cinema (no Shopping Frei Caneca), acontecem a cada dois meses, sempre tendo exibição de filmes seguida de debate. A gente também trabalha com formação de professores. Realizamos consultorias a empresas que têm interesse em estabelecer um ambiente mais igualitário. Nesse grupo, a gente atua não necessariamente com recrutamento, como muita gente faz, mas com a formação dos funcionários que já estão lá. Que é justamente para tentar colaborar com um ambiente seguro para essa população diversa que vai adentrar aquele espaço.
AUPA | Como funciona para vocês esse resgate da matriz afro-brasileira nas atividades desenvolvidas pela AfroeducAÇÃO?
PAOLA PRANDINI | É um trabalho de guerrilha, que eu brinco. Não é nem de formiguinha, é de guerrilha mesmo. Porque a gente precisa enaltecer um discurso que é totalmente contra a lógica do senso comum brasileiro, que é, de fato, estruturalmente racista. Então, é uma briga de foice, sem dúvida alguma, o tempo todo. Inclusive, com a ampliação de protagonismo e representatividade de pessoas negras em cargos de liderança e chefiando diferentes organizações, sejam elas empresas ou não. Eu acho que isso também foi colaborando para conseguir estabelecer mais diálogo e mais rede e, hoje, ao menos, é difícil você encontrar uma pessoa que não aceite o fato de que o Brasil é um país racista. Isso não quer dizer que a pessoa vai se reconhecer como racista, mas ela entende que o país que ela vive é racista, que tem uma estrutura racista. Então, isso já é um passo em prol de uma conscientização maior daquela pessoa enquanto cidadã e indivíduo. Mas é desafiador, a gente fica tentando reinventar a roda o tempo inteiro.
AUPA | Há ainda questões burocráticas onde o racismo é muito enraizado, né…?
PAOLA PRANDINI | Super, super. A gente chega a ponto de, às vezes, perceber que há projetos nossos que não são escolhidos em editais por uma série de razões, mas entre elas o fato de que a gente não alivia o nosso discurso. Então, não falamos em diversidade, fala-se em valorização da diferença. Não falamos que somos todos iguais, falamos, na verdade, que somos diferentes e precisamos questionar os privilégios. Falamos sempre em negritude e ‘branquitude’. Muitas vezes, esses conflitos e esses termos fazem as pessoas quererem nos silenciar e negar, exatamente, dentro dessa atmosfera, de que somos todos iguais. Este é um discurso que não defendemos e que não amenizamos, de jeito algum. Então, devido à escolha de ideologia, muitas das vezes, não conseguimos ter as portas abertas para algumas ações devido à burocracia que é racista e não viabiliza nossa atuação.
“Para se chegar na descolonização do currículo, que é o nosso enfoque maior, é necessário primeiro, partir de uma desconstrução das mentes.”
AUPA | Fegundo o site da AfroeducAÇÃO, cerca de 8 mil pessoas já foram beneficiadas pelas ações de vocês. De forma indireta, mais de 400 mil. Comente esses números, por favor, que são bem expressivos.
PAOLA PRANDINI | Eu acho que chegamos nessa projeção porque se trabalha muito com professor. E professor tem um impacto em muitas vidas. Pensando nisso e fazendo, por exemplo, um cálculo simples, um professor tem, em média, 30 pessoas com as quais ele se relaciona por hora. Ele é, na realidade, um grande multiplicador do nosso trabalho. E é exatamente por isso que conseguimos chegar numa projeção indireta como esta. Entendo que uma vez que o educador participa de uma atividade da AfroeducAÇÃO, ele certamente levará esse conteúdo que teve acesso para os alunos, para comunidade escolar, como um todo, para gestão da escola, para os outros profissionais da escola. E isso vai virando uma rede grande.
AUPA | Desse diálogo com os professores, especificamente, qual o maior desafio que você percebe ainda hoje?
PAOLA PRANDINI | Acho que o maior desafio é que esse professor não é uma ilha. E pelo fato de ele não ser uma ilha, muitas vezes, traz toda a lógica desse racismo estrutural como parte da sua visão de mundo. Então, não é porque ele é educador que tem enraizado em si a problemática do que é ser negro e do que é ser branco no Brasil. No entanto, inicialmente se precisa desconstruir essa mentalidade para que se possa “descolonizar currículo”, isso se não estivermos descolonizando mentes, saberes. Então, para se chegar na descolonização do currículo, que é o nosso enfoque maior, é necessário, primeiramente, partir de uma desconstrução das mentes. Posso dizer que essa é a etapa mais trabalhosa e muito mais longa. E aí, por vezes, precisamos de muito mais tempo em formação do professor para buscar garantir um pouco dessa coerência, inclusive, epistemológica de aplicação da lei.
AUPA | E é um processo que dói no começo.
PAOLA PRANDINI | Pois é, ele dói para todo mundo. Ele dói para quem é negro, porque é muito doloroso, e ele dói para quem é branco, porque a pessoa não quer se ver como racista, então, ela passa a ter vergonha disso. E essa “vergonha-branca”, meio que paralisa a pessoa que possui esse sentimento dentro de si. Muitas vezes, inclusive, paralisa a escuta dela também. Sendo assim, pergunto: como fazer processos pedagógicos coerentes sem troca, escuta e diálogo? Eu não vejo saída. Por isso, dá tanto trabalho e é tão mais difícil, às vezes, mostrar a realidade . A gente brinca, aqui, que o indivíduo fica em terapia de grupo. E este tipo de terapia é mantido um bom tempo durante o processo de formação.
“É um campo que ainda tem muito de falar e pouco de agir. Ainda temos muita espuma.” O alerta para o ecossistema de negócios de impacto no Brasil não vem de qualquer um. Edgard Barki é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e doutor em Administração de Empresas pela mesma instituição. Ele é um dos braços acadêmicos fortes que têm puxado a discussão sobre negócios de impacto e outras ramificações do chamado capitalismo consciente ou capitalismo com propósito.
Em entrevista à Aupa, Edgard comenta sobre o que pode significar para os sistemas econômicos essas tendências que buscam mitigar os efeitos colaterais do capitalismo — a desigualdade de renda sendo o mais crítico deles. Por outro lado, com ponderação ímpar, também aponta para alguns perigos, ou “espumas”, que todo o falatório sobre negócios de impacto pode gerar. “O meu receio particular é que a gente transforme tudo isso em um grande social washing”, compartilha Edgard.
“Mudanças sociais disruptivas são raras. Muitas vezes são mudanças incrementais que vão ocorrendo entre uma geração e outra.”
AUPA | Podemos descrever essas tendências de reforma do capitalismo como um Zeitgeist, assim, um espírito do tempo? Ou você ainda tem a sensação de que se tratam de movimentos ainda em gestação e não fazem parte das principais discussões econômicas?
EDGARD BARKI | Ainda não é mainstream, com certeza. É quase como se fosse o apêndice do capitalismo, é um apêndice pequeno. O problema é que todo mundo que atua no campo pensa igual. Então temos a falsa sensação de que todo o mercado está com essa mentalidade. Na verdade, é uma parcela, e eu diria uma parcela pequena. Porém, eu que atuo há mais de dez anos no campo, vejo que essa parcela é exponencialmente maior do que já foi. E quando se observa a mobilização de governos europeus, grandes empresas e terceiro setor nesse sentido, pode-se imaginar que essas tendências ainda podem crescer. O meu receio particular é que a gente transforme tudo isso em um grande social washing. Seria só dar uma pintura social na empresa para mostrar que você tem um impacto, que você se preocupa com a sociedade, mas continua com velhas práticas na condução mais central dos negócios. São os dois lados que podem acontecer.
AUPA | O que foi necessário para que empresas pudessem ver a chamada “base da pirâmide” menos como mercado consumidor e mais como protagonista de negócios? Ou ainda há campos para se avançar nesse sentido?
EDGARD BARKI | Não, acho que ainda há muito campo para avançar nesse sentido. Se olharmos nua e cruamente, você vê que grande parte das empresas vê a base da pirâmide apenas como um grande mercado consumidor. Por outro lado, ainda bem que há algumas vozes que alertam: “espera aí, o que estamos fazendo?”. Quando se discute as ideias do [Coimbatore Krishnao] Prahalad, que foi o primeiro que tratou mais da base da pirâmide, há críticas por ele ter uma visão muito ligada a multinacionais vendendo para a população de baixa renda. Mas, no meu ponto de vista, apesar de efetivamente as críticas serem válidas, ele colocou uma questão diferente: como podemos ter um capitalismo mais equitativo, em que essas pessoas também possam consumir? Isso faz sentido por si só, mas a crítica é que não adianta só o consumo. Também devemos trabalhar para desenvolver, diminuir concentração de renda, etecetera. Mas, enfim, as ideias vão amadurecendo.
AUPA | E, na sua visão, os negócios de impacto contemplam esse amadurecimento?
EDGARD BARKI | Acho que sim, no sentido de que você dá luz aos problemas da sociedade e tenta de alguma forma saná-los por meio de negócios que também nascem de baixo para cima, e não das grandes corporações. Mas ainda, até esse momento, a gente vê que os protagonistas continuam sendo os homens brancos de classe alta. Como que a gente consegue fazer com que a base da pirâmide vire protagonista? Por isso eu gosto muito dessa ideia de negócio de impacto que vem da periferia. Em vez do empreendedor social que vem da Faria Lima falar sobre a favela, o empreendedor social que vem da favela fala sobre a favela e tenta resolver os problemas da favela. É realmente uma mudança de foco. Mudança dos protagonistas.
E acho que, de novo, são evoluções. E é assim que as inovações sociais acontecem. Primeiro vieram os negócios de impacto de alta renda. Agora são os negócios de impacto da periferia. Mudanças sociais disruptivas são raras. Muitas vezes são mudanças incrementais que vão ocorrendo entre uma geração e outra. E essa tendência dos negócios de impacto é muito recente. E quando a gente coloca negócio de impacto periférico, mais recente ainda.
AUPA | Até porque é mais fácil definir problemas sociais com pessoas que compartilham deles para buscar essas inovações…
EDGARD BARKI | Isso. Se você quer fazer alguma coisa de impacto social, de mexer com a base da pirâmide, você precisa estar lá. Você precisa vivenciar. Ou você precisa ser de lá. Tem que estar junto e entendendo e dialogando. Só que diálogo é difícil. Temos muitos muros sociais, invisíveis e visíveis. Temos muitos pré-conceitos, muitas ideias pré-concebidas, muitas visões de mundo.
“Negócios de impacto são organizações que estão buscando como objetivo central a melhoria na sociedade. Mas ainda é preciso saber identificar o que é impacto social e o que é simplesmente uma exploração.”
AUPA | O que você imagina que seja um sinal de alerta importante que deva ser feito para o ecossistema de impacto?
EDGARD BARKI | Há uma necessidade importante de diferenciar o que é efetivamente impacto e o que é um social washing, o que é uma venda camuflada de impacto social. Afinal, todas as empresas tem impacto. O fabricante de armas está gerando empregos – só para citar um pior. O que temos são várias tonalidades de impacto. Negócios de impacto são organizações que estão buscando como objetivo central a melhoria na sociedade. Só que sobre melhoria na sociedade, cada um tem sua ótica também. Ainda é preciso saber identificar o que é impacto social e o que é simplesmente uma exploração.
AUPA | Como professor e pesquisador, você acha que esse conceito de impacto precisa ficar necessariamente aberto, e que vamos entendo a cada caso, ou você precisa ser restringido objetivamente?
EDGARD BARKI | Boa pergunta. Realmente não há uma boa definição. E efetivamente disso vem a minha preocupação: quase toda empresa pode falar que é um negócio de impacto. Agora, é difícil você chegar nessa definição restrita. Por isso eu acredito muito mais em negócios de impacto como uma filosofia do que como um conceito fechado. Mas isso abre para um grande dilema: à medida que essa noção do que é impacto se mantém ampla, temos a aproximação de potenciais aproveitadores. E, quando eles chegam, acabam toda essa filosofia.
“para mim faz sentido fomentar inovação social que venha de vários atores. Ou seja, juntamos grandes empresas, com empreendedores, com terceiro setor, e eventualmente governo.”
AUPA | Existe muita dificuldade no ecossistema em criar modelos para medir impacto. Você acha que essa questão da mensuração mora um pouquinho nesse problema de conceito?
EDGARD BARKI | A primeira pergunta que eu te devolvo é: por que a gente quer fazer mensuração de impactos? A mensuração faz sentido à medida que é utilizada pelo negócio, pelo empreendedor, para melhoria do seu impacto. O que acontece muitas vezes é a avaliação de impacto feita para mostrar aos investidores. E aí não tem por que. A primeira discussão é: por que eu vou fazer? E a partir do por que é que eu defino melhor a metodologia. Outro ponto a se pensar é a nossa busca por uma bala de prata. Eu não creio que exista essa bala de prata que serve a todos os negócios de uma forma homogênea, padronizada. Cada negócio vai achar sua metodologia. Talvez para os investidores isso soe muito negativo. Afinal, com metodologias diferentes, como comparar o sucesso dos negócios? A isso eu digo: devemos buscar uma nova lógica. O que deve ser observado em cada empresa é qual tipo de impacto ela quer ter e como ela faz para alcançá-lo. Não precisamos compará-las.
Por fim, eu penso que a gente joga muito peso nas costas do empreendedor social. Porque não basta a cobrança de empreender, você tem que ter impacto também. Não basta você empreender e ter impacto, você tem que provar para sociedade que você teve impacto. A não ser que você consiga fazer com que empreendedor enxergue a avaliação de impacto uma ferramenta de gestão, isso não será prioridade dele. Eu tenho cem mil reais. O que eu vou fazer? Vou investir numa pesquisa para fazer avaliação de impacto ou vou aumentar meu negócio para gerar mais impacto? Os recursos são limitados, o empreendedor tem muito viés de fazer mais e não dá para colocar mais uma coisa nas costas dele. Eu não quero dizer que eu não acredito que seja relevante avaliação de impacto. Mas não é um absurdo que empreendedores não a façam. Isso é querer realmente um super-homem ou uma mulher-maravilha como empreendedores.
AUPA | O que você imagina que são as pautas mais importantes para construir essa estrutura de inovação social no Brasil?
EDGARD BARKI | Eu estive em Portugal no fim de 2018. Eles têm até uma estrutura que se chama Portugal Inovação Social, dentro do governo. Lá eles estão muito mais preocupados com a inovação social do que com quem está fazendo a inovação social. Ou seja, é algo pode vir de um negócio de impacto, mas também de uma grande empresa, do terceiro setor ou do governo. Essa mentalidade tira o peso do empreendedor. Ele continua relevante, mas toda a sociedade é convidada para olhar para a inovação social.
Já no Brasil eu acho que a gente precisa de mais ação e menos pensamento. É um campo que ainda tem muito de falar e pouco de agir. Ainda temos muita espuma. E para ir para o concreto, temos que juntar vários players do setor. Por isso para mim faz sentido fomentar inovação social que venha de vários atores. Ou seja, juntamos grandes empresas, com empreendedores, com terceiro setor, e eventualmente governo. Para buscar coisas diferentes.
Desde então, a reportagem da Aupa esteve em contato com o Saldorama e o Civi-co para acompanhar seus desdobramentos dos casos. Embora as partes não tenham concordado em gravar entrevistas, preparamos um resumo de todas as informações que coletamos. Dos episódios, ficam três reflexões, ou lições de casa, para o setor: suas práticas trabalhistas, a estrutura de apoio que há para empreendedores em crises como essas e, por fim, os perigos do excesso de visibilidade.
O caso Saladorama
As notícias contra Hamilton e o Saladorama caíram como uma bomba para o ecossistema de impacto social brasileiro. Não seria para menos. Em um ambiente que ainda procura por histórias de saída bem sucedidas, tanto financeiramente quanto de impacto obtido, o Saladorama e seus êxitos supriam uma expectativa de todo um setor. Tornou-se, assim, um dos seus “queridinhos”.
Produtos da Saladorama: empresa ajuda na questão da saúde familiar (Foto: Reprodução)
Em linhas gerais, o Saladorama é uma delivery de saladas e alimentação orgânica principalmente direcionado a comunidades periféricas. Mas seu propósito, segundo entrevistas dadas anteriormente por Hamilton, é o de democratizar o acesso e o conhecimento sobre alimentação saudável, também via cursos e formação. Apesar de ser direcionado a comunidades periféricas, o Saladorama atua também fora delas. Atualmente, o negócio tem unidades em Recife – de onde Hamilton comanda a operação –, Sorocaba, Florianópolis, Rio de Janeiro e São Luís.
Durante sua trajetória, o Saladorama passou por processos de aceleração e mentoria por instituições renomadas. Em 2014, ainda em estágio de concepção, participou de um programa experimental de incubação na Yunus Negócios Sociais. Entre 2016 e 2017, passou por mentoria da Red Bull Amaphiko.
Em 2017, fez parte de um programa piloto do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de apoio a 30 afroempreendedores brasileiros. O programa recebeu U$ 500 mil em investimentos nesses negócios, e contou com apoio das organizações Endeavor, Anjos do Brasil e Key Associados. Naquele mesmo ano, Hamilton ganhou o prêmio Empreendedor Social do jornal Folha de S. Paulo, na categoria escolha popular, por votação do público.
Em 2018, mais uma boa notícia para o negócio: o Movimento Coletivo, plataforma de investimentos da Coca-Cola Brasil, selecionou o Saladorama e outros cinco negócios de alimentação e nutrição para receberem o investimento de R$ 1,5 milhão, no total, além de apoio e mentoria dentro do prazo de um ano. A Aupa não obteve acesso a informações detalhadas de como avançou o programa após as denúncias nem do Saladorama e nem da Coca-Cola.
Com tantas notícias positivas, Hamilton e o Saladorama passaram a ser destaque na mídia como exemplo de empreendimento social positivo. Desde então, seu fundador é convidado a dar palestras e a participar de eventos do setor.
Por isso mesmo, veio com surpresa a reportagem da Pública que acusa Hamilton e o Saladorama de falsear sua história e seus méritos. A começar pela métrica de impacto: segundo o relato, não há documentos que comprovam as mais de 400 mil pessoas que o negócio afirma impactar e questiona esses números.
Em 2017, a organização Pipe.Social, focada em dados sobre o setor, mapeou diversos negócios de impacto para compreender suas dificuldades e perfis. Segundo o levantamento, outros 31% de negócios não definiram indicadores de medição de impacto, e 28% definiram, mas não medem de maneira formal.
Para rebater as acusações, Hamilton publicou uma nota em seu Medium em que afirma preparar um relatório de todos indicadores. Também na nota, ele alega que “métrica de impacto não é uma ciência exata”.
Não há um consenso sobre metodologias e métricas para avaliação de impacto no setor. “Eu não creio que exista essa bala de prata, que vai servir a todos os negócios de uma forma homogênea, padronizada. Cada negócio vai achar sua forma”, avalia o professor Edgard Barki, doutor em administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Outro ponto delicado foi a acusação de falta de pagamento de Jannaína da Silva, que foi colaboradora da empresa entre 2016 e 2017 fazendo saladas. Neste tema, Hamilton afirma que o pagamento com a colaboradora era feito via Recibo de Pagamento Autônomo (RPA). Trata-se de um documento que deve ser emitido por aquele que contrata o serviço de algum profissional pessoa física sem que seja regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Neste regime, o profissional não mantém vínculo empregatício com a empresa, mas nada impede que seja contratado de outra forma futuramente. Todavia, se a pessoa física comprovar vínculo por meio de uma reclamatória trabalhista, a empresa deverá equipará-lo a um colaborador registrado.
Segundo o advogado trabalhista especializado em startups, Lucas Orsolini, “independentemente do contrato desenhado, se no dia a dia ficar configurada pessoalidade, subordinação, habitualidade [ou periodicidade do serviço prestado] e onerosidade na relação de trabalho, o empregador está sob o risco de ser reconhecida relação de emprego.”
No caso do Saladorama, Hamilton alega não conter dívidas com a colaboradora, e a própria não moveu ação contra a empresa desde o ocorrido, até o momento.
Nas apurações e conversas com a Aupa o Saladorama informou que está produzindo relatórios e que, no momento oportuno, falará com a Aupa e a imprensa para maiores esclarecimentos sobre o assunto.
O caso Civi-co
O ocorrido no coworking Civi-co também envolve relações de trabalho. A recepcionista Raiane dos Santos mantinha um contrato temporário de seis meses com a empresa e recebia salário como pessoa jurídica, emitindo nota por meio de MEI (microrempreendedor individual).
Conforme noticiou o blog do jornalista Thiago Herdy, ao término do contrato, Raiane teria sido dispensada do trabalho apesar de estar grávida – o que, sob um regime CLT, seria ilegal.
Recepção do Civi-co, coworking de empreendimentos sociais localizado em Pinheiros, São Paulo.
Com pouco mais de um ano, o Civi-co ganhou grande destaque em veículos de comunicação com sua proposta de criar uma comunidade de empreendedores sociais e negócios de impacto. Ocupando uma charmosa rua sem saída no bairro de Pinheiros, em São Paulo, o prédio conta com 4 andares de salas e mesas que recebem empreendedores. Roberto Podval é CEO do co-fundador do espaço, também fundado por Patrícia Villela Marino, esposa de herdeiro do banco Itaú. O local é resultado do investimento pessoal de Marino e seu esposo. Seu modelo de negócios está baseado na cobrança taxas mensais aos seus residentes e buscando parcerias e patrocínios com corporações.
A Civi-co assumiu publicamente o erro e, em contato com a Aupa, alegou ter havido um engano ao deixar o contrato vencer sem renegociar suas condições. Em poucos dias, sua atitude foi contratar Raiane, desta vez em regime CLT. O mesmo aconteceu com os demais colaboradores diretos do coworking: todos recebiam via PJ e agora são devidamente registrados.
Patricia e Roberto também reuniriam todos os seus residentes em seu auditório para tratar do assunto. O local conta com residentes conhecidos, como Quintessa, Instituto Feira Preta, Observatório do Terceiro Setor, Pipe.Social, bemtevi, Grupo Tellus e 49 outros. Os fundadores tiveram de “ouvir verdades” dos residentes que se indignaram com o caso, como comentou a gerente de comunicação do coworking, Ana Luiza Prudente. O comentário, porém, foi de que, após o caso, o coworking finalmente saia da “fase de excitação” de um novo projeto.
As lições de casa para o setor
1. Leis trabalhistas
Não é só um debate do ecossistema de impacto. A discussão a cerca das relações de trabalho irão ser presentes no próximo ano. Recentemente, em transmissão ao vivo em rede social, o presidente eleito Jair Bolsonaro declarou que a lei trabalhista ideal de seu governo deveria “beirar a informalidade”
Na prática, no ecossistema de inovação e startups em geral, é comum relações de trabalhos que não são mediadas pela CLT. Em 2016, segundo o Sebrae, 20% do PIB brasileiro pertencia a pequenos e micro empreendedores que não formalizaram a situação de seus negócios e, por isso, também não registraram funcionários. Em sentido mais amplo, segundo dados do IBGE, 37,3 milhões de brasileiros trabalharam sem carteira assinada em 2017.
O diagnóstico geral é de que a formalização é um peso oneroso a esses negócios, que não têm receita, quando em estágio inicial, para arcar com o custo social de ter funcionários. Porém, é preciso buscar por segurança jurídica nas relações de trabalho, seja por meio de CLT ou outros regimes de contratação.
Para Lucas Orsolini, “startups no início do desenvolvimento sempre vêm acompanhadas de riscos jurídicos, principalmente o trabalhista. O principal ponto na relação de serviços que empreendedores estabelecem com terceiros é evitar a configuração dos requisitos de vínculo de emprego no dia a dia”.
Também segundo o especialista em leis trabalhistas e startups, o advogado Marcílio Drummond afirma que o ideal é que sempre estejam presentes relação de emprego formalizada entre essas empresas e seus colaboradores, embora seja um caminho oneroso. “Certamente os encargos trabalhistas são muito mais sentidos pelos menores empreendimentos, pois eles representam percentual muito maior dos faturamentos das empresas”, opina Drummond.
Todavia, a reforma trabalhista aprovada no ano passado permite a figura de autônomo exclusivo, para contratação se serviços por pessoa jurídica em regime de exclusividade com a empresa. Antes da reforma, a empresa que contratasse um autônomo de forma contínua seria considerada fraudulenta. “O que definitivamente não pode ser feito é deixar de formalizar a forma escolhida para a prestação dos serviços, seja por CLT, seja entre PJs”, ressalta Drummond.
Drummond ainda ressalta que existe uma “dor de crescimento” em pequenos negócios, quando seu crescimento não é acompanhado da formalização, por exemplo, dessas relações de trabalho. “Principalmente porque muitas vezes as startups não regularizam desde o início as relações com colaboradores, prestadores de serviços e sócios”, afirma. Mas esta regularização pode ser muito importante para o negócio: “Seja para que receba investimentos, seja para ser adquirida ou incorporada por outra empresa, o valor da empresa é afetado quando se detecta problemas de relação de emprego.”
Sendo assim, os casos citados abrem uma oportunidade para o ecossistema de negócios de impacto se posicionar no tema, avaliando qual é o ambiente trabalhista ideal para o fomento de novos negócios.
Mas esses episódios também anunciam uma tensão: há uma dissonância em promover impacto social positivo e não criar a segurança jurídica e social necessária para seus colaboradores.
2. Apoio a empreendedores
Gerada a crise, a Civi-co dispunha de estrutura jurídica e de recursos para solucionar o problema em questão de dias. O Saladorama, não. Os casos expõem, mais uma vez, a ferida da desigualdade que há entre negócios periféricos e aqueles que dispõem de mais privilégios.
Nos dias que seguiram as denúncias, Hamilton respondeu às acusações em nota oficial e se isolou de entrevistas e contatos. A justificativa era simples: ele precisa voltar a focar no negócio.
Para a reportagem da Pública, a Red Bull Maphiko afirmou que o Saladorama não faz parte da atual fase do programa. Também à Pública, a Folha de S. Paulo alegou que o conteúdo produzido sobre a empresa em função do prêmio “retratava aquele momento da startup” e que sua premiação abrirá processo interno de avaliação sobre a retirada de Hamilton de sua rede de empreendedores, caso haja acusação formal. A Coca-Cola declara que seguirá o cronograma do Movimento Coletivo e fará novas visitas ao negócio, para avaliar sua atual condição.
Procurada pela Aupa, a Yunus Negócios Sociais emitiu comunicado declarando “não ter mantido contato formal com o empreendedor e com o projeto” após o programa de 2014 e, portanto, não podendo aprofundar na suas considerações.
Sobre o tema, a colunista da Aupa, Ana Flávia Vidigal, escreve em sua última coluna: “Empreender pode parecer super sexy e bacana, receber um prêmio aqui outro lá, ser convidado a palestrar, estar na mídia constantemente. Mas a responsabilidade com as pessoas que acreditam no sonho do empreendedor e topam seguir junto nunca pode ser deixada de lado.”
3. Os perigos da visibilidade
O ecossistema de impacto, como um todo, persegue a visibilidade midiática como estratégia de disseminar o conceito de negócios de impacto e atrair investimentos, recursos e parcerias ao setor. Não à toa, Comunicação e Mídia são um dos eixos estratégicos de investimento anunciados pela Aliança pelos Negócios de Impacto no último Fórum de Finanças Sociais, realizado em junho de 2018 pela Aliança, até então chamada de Força Tarefa.
Um dos resultados dessa prioridade já aparecem. A Aliança apoiará premiação para jornalistas que cobrem o setor, o Prêmio Jornalista de Impacto, que acontecerá em março. O prêmio é organizado pela organização ponteAponte em parceria com a Faculdade Cásper Líbero.
Tanto Civi-co quanto Saladorama são negócios que receberam vasta atenção das mídias. No Civi-co, porém, a reclamação é de que essa exposição deixaram eles com “teto de vidro”. No Saladorama, a avaliação é parecida, no sentido de que, de agora em diante, é preciso dar menos entrevistas e focar mais no negócio.
A mídia é uma encantadora de serpentes. O sucesso de uma empresa pode ser facilmente confundido com a sua exposição nos meios de comunicação. Todavia, o crescimento de visibilidade não acompanha o crescimento das empresas, inclusive de seu aprendizado e formalização. Não à toa, comunicação aparenta continuar a ser uma dor do setor. No levantamento da Pipe.Social, de 2017, comunicação aparece como principal dificuldade dos negócios, atrás apenas de captação de recursos e acesso ao investimento.
Aqui, o papel de um jornalismo que não seja condescendente com negócios é crucial. Mas não anda desacompanhado de uma proposta construtiva, que compreenda e aprenda com a jornada desses negócios. Nesse sentido, tudo bem se a fase do encantamento e excitação estiver acabando para que se converse, nas mídias, sobre histórias mais próximas do dia a dia dos negócios de impacto, ainda que em menos volume.
Tornou-se lugar-comum dizer que vida de empreendedor não é fácil. Que empreender é girar e equilibrar vários pratinhos ao mesmo tempo. De fato, é um corre danado para montar equipe, pensar na infraestrutura necessária, na parte administrativa financeira, no desenvolvimento e aperfeiçoamento constante de produtos e serviços, nas estratégias de captação de clientes e recursos, e na exposição da empresa e do que ela se propõe a fazer. Além do que, o planejado nem sempre é seguido à risca. Mudanças ao longa da jornada também são muito frequentes e o que funciona para uns, pode não servir de nada para outros.
Empreender com propósito, ter mais que um negócio, ser movido por uma causa, é uma escolha também. É escolher um caminho árduo, de muita resiliência e — a depender do setor — de muito desbravamento.
Mas é sempre bom relembrar das armadilhas que os empreendedores estão sujeitos.
Em 2015, quando estava na gestão do programa de apoio a startups de educação no Instituto Inspirare, desenvolvemos um estudo sobre empreendedores desse setor. A pesquisa As Dores e Delícias de Inovar em Educaçãoevidenciou as carências do empreendedor de Educação, que acredito serem comuns aos pares dos demais setores.
A amostra de 50 entrevistados trouxe algumas clarezas. Os empreendedores entram de cabeça e sofrem com: 1. a solidão na tomada de decisões; 2. o apego e a paixão “cega” pela solução que desenvolvem; e 3. a falta de dinheiro. Tudo isso demanda apoios emocionais, estratégicos e financeiros.
Será que eles têm se preparado para tantos desafios? Será que a rede de apoio desses empreendedores está endereçando todas essas questões?
Ao longo dos últimos 10, 12 anos, novos apoiadores surgiram no ecossistema. Os chamados intermediários: aceleradoras, organizações de fomento, grandes empresas. Os programas de aceleração, como o nome sugere, têm o papel de intensificar o ritmo de crescimento de negócios em estágios iniciais. Para isso, incluem diversas e variadas formas de apoio, entre vivências, treinamentos, mentorias, conexão com potenciais investidores, espaço de trabalho e fortalecimento de networking.
Há muitas organizações sérias, fazendo trabalhos incríveis e fortalecendo os empreendedores e seus negócios. Mas é preciso refletir sobre os programas, sobre os empreendimentos e formação de seus líderes.
Empreender pode parecer super sexy e bacana, receber um prêmio aqui outro lá, ser convidado a palestrar, estar na mídia constantemente. Mas a gestão do negócio, a responsabilidade com as pessoas que acreditam no sonho do empreendedor e topam seguir junto, nunca pode ser deixado de lado.
O estudo do Inspirare concluiu que o empreendedor com conhecimentos de negócio, como gestão, desenvoltura comercial e entendimento dos conceitos de uma startup leva vantagem sobre os demais. Por mais que a jornada na educação, e em outros setores específicos, traga várias surpresas ao longo do caminho, os que têm em mente o negócio, lidam melhor com os imprevistos e têm uma análise estratégica constante das fragilidades internas e externas da empresa.
Por outro lado, o estudo apontou que o impacto é o resultado final que todos buscam. O empreendedor deve ter sempre em vista sua finalidade social, sabendo medir, planejar e replanejar o futuro do negócio a partir do impacto desejado e declarado.
De certa forma, os programas de aceleração já focam bastante no desenvolvimento e crescimento da figura jurídica. Talvez seja hora de trabalhar o autoconhecimento da física, da figura do empreendedor.
Parte da organização que os próprios atores das Finanças Sociais estão realizando para fortalecer o ecossistema está acontecendo no âmbito constitucional. Isso porque, até então, não existe uma personalidade jurídica que enquadre estas empresas que querem lucrar com a melhoria do planeta. Todavia, há movimentos de diferentes propostas que buscam a regulamentação dos negócios de impacto a criação de um macroambiente jurídico e econômico mais favorável às finanças sociais.
Por dentro da ENIMPACTO
Com a chancela presidencial em dezembro de 2017, criou-se a Estratégia Nacional de Investimento e Negócios de Impacto (ENIMPACTO). Trata-se de um grupo composto por órgãos do governo e entidades privadas para discutir meios de fortalecer o setor de negócios de impacto no Brasil. Ao longo de 2018, lá tem sido o principal lugar de articulação no sentido de aumentar a oferta de capital para o setor e criar um ambiente jurídico favorável ao desenvolvimento de novos negócios.
Atualmente, o grupo que desenha essas estratégias é presidido por representantes do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), mas também é composto por representantes de bancos públicos e de outros sete ministérios.
À frente da iniciativa está a Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto. Dentre seus membros, está a Empresa B, um movimento global que busca criar um ecossistema de empresas com o propósito de gerar impacto social e ambiental. Esta iniciativa foi eleita para liderar um dos quatro Grupos de Trabalhos criados para garantir a execução da ENIMPACTO.
E como funciona? Muito simples. A ENIMPACTO é dividida em quatro eixos temáticos, cada qual com objetivos e ações estratégicas específicos. No primeiro eixo, Ampliação da Oferta de Capital, basicamente buscam-se novas formas de financiar novos negócios de impacto. No segundo, Aumento do Número de Negócios de Impacto, procura-se expandir conexões com cadeias de valor de grandes empresas, aumentar o acesso à compras públicas e promover diversidade de gênero, raça e social entre empreendedores. O tópico Fortalecimento de Organizações Intermediárias é auto-explicativo: financiar e espalhar incubadoras, aceleradoras e centros de formação e pesquisa no tema.
O objetivo do Grupo de Trabalho “Promoção de um Ambiente Institucional e Normativo Favorável” inclui, dentre outros, o tema da legislação específica para estes. “Dentro deste GT nós elencamos 7 ações prioritárias e a primeira delas é a institucionalização de uma estrutura jurídica para negócios de impacto”, contou Marcel Fukayama, cofundador e Diretor Executivo do Sistema B.
Marcel Fukayama
Projeto Parado: Sociedade de Interesse Comunitário
Um dos principais focos de atuação da ENIMPACTO é o de criar, junto ao Congresso, uma personalidade jurídica que pudesse contemplar especificamente os negócios de impacto e diferenciá-los de outros empreendimentos.
Porém, o ano eleitoral, como foi de 2018, limitou a ENIMPACTO no objetivo de encaminhar propostas de novos projetos para as casas legislativas. Para o secretário de Inovação do MDIC e também participante da ENIMPACTO, Rafael Moreira, “propor projetos não faz sentido quando se está nas vésperas da troca da legislatura. Esses projetos acabariam ficando mortos ali nas comissões.”
É o que tem acontecido, por exemplo, com um projeto em tramitação no Senado, o PLS 788/2015 do senador Wilder Morais (PP-GO). O texto introduz uma nova qualificação societária para que empresas possam ser enquadradas como Sociedade de Interesse Comunitário. Estas seriam aquelas destinadas, segundo o projeto, “à promoção do bem-estar da comunidade em que atuam, em âmbito local e global”. São empreendimentos direcionados a temas como proteção do meio-ambiente, preservação do interesse histórico, turístico ou artístico e defesa da dignidade de minorias.
O projeto está parado na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) desde fevereiro de 2016, e ficou aguardando a designação do relator até o último 30 de novembro, quando assumiu a relatoria o senador Acir Gurgacz (PDT-PR). No dia 13 de dezembro deste ano, no entanto, Gurgacz devolveu a matéria, que agora aguarda novo relator. Após sair da CCJ, tendo modificações ou não, o projeto seguirá para votação no plenário do Senado e, caso aprovado, irá para apreciação e sanção presidencial.
Solução mais rápida? Sociedade Anônima Simplificada
Tido pelo secretário Rafael Moreira como caminho de curto prazo, já está em circulação desde 2014 o projeto da criação da Sociedade Anônima Simplificada (PL 352/2014). Ele não se refere, especificamente, aos negócios de impacto, mas é tido com bons olhos como forma de fomentar startups e negócios inovadores, em amplo aspecto.
Para uma startup receber um aporte de um fundo de investimento, ela precisa se converter em Sociedade Anônima de capital fechado por questões de segurança jurídica. Com isso, ela vai para um regime de tributação de uma sociedade anônima, que é um regime muito mais caro. A proposta seria a de enquadrar a sociedade anônima no SIMPLES, mais barato do ponto de vista fiscal, se ela fatura até 3,6 milhões anuais. A medida ajudaria a atrair, portanto, maior oferta de capital a startups e alcançaria também negócios de impacto.
Neste ano, havia a expectativa por parte do MDIC que o projeto fosse votado em plenário antes da troca da legislatura. Porém, continua nas mãos do relator Jorge Viana, na Comissão de Constituição e Justiça, desde março de 2017. Um projeto semelhante também está em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 4303/2012) e atualmente está na Comissão de Finanças e Tributação (CFT), não tendo ainda chegado à plenário.
Segundo o diretor do MDIC, Alessandro França Dantas, o tema da Sociedade Anônima passará por novos esforços de articulação e esta à procura de um patrocinador. Portanto, segue incerto até que o novo governo assuma em janeiro.
Novo Projeto: Sociedade de Benefícios
A ENIMPACTO articula propor, em 2019, um outro projeto de lei que prevê a criação da Sociedade de Benefícios. Esta contempla especificamente os negócios de impacto e engloba as seguintes características:
Ter declarado no objeto social o propósito de causar impacto social e ambiental positivo no curso da atividade econômica com finalidade lucrativa.
Ter responsabilidade ampliada dos administradores e gestores do negócio para considerar os stakeholders no processo de decisão a curto e longo prazo.
Ter compromisso com a transparência em medir e reportar seu triplo impacto, não apenas econômico, mas também social e ambiental.
O grupo submeteu para o Executivo o projeto de lei para essa personalidade jurídica. Por conta da troca de governo, o texto ficou parado na Casa Civil e não chegou a ser apreciado no Congresso.
Por que isso é bom para todo o setor?
Com projetos de lei como os citados, o fortalecimento do setor virá à medida que a classificação garantir que a oferta de capital seja concentrada. Marcel Fukayama , do Sistema B, por sua vez, dá uma interessante orientação a respeito “o principal benefício para o empreendedor é ter uma alternativa legal/formal de se institucionalizar como empresa que gera benefícios públicos. Nesse caso, o gestor público passaria a ter mais segurança jurídica para escolher negócios que geram, não apenas, impacto econômico, mas também social e ambiental.”
Outra vantagem é a ampliação da oferta de capital específica para essa qualificação de personalidade jurídica. “Então, o BNDES poderia começar a atuar verdadeiramente como banco de desenvolvimento ao conceder crédito para este tipo de negócio e institucionalizado de empreendimento”, arredonda Marcel.
Embora o cenário que se traça seja mais animador, não há, ainda, motivos para celebrar. O processo para que esse projeto vire realidade, até o momento, está em estágio inicial. Segundo consta, não há o envolvimento de congressistas à frente dessa iniciativa, apesar das interlocuções feitas com os deputados Alessandro Molon (PSB – RJ) e Otávio Leite (PSDB). “Se eu fosse estimar eu diria que a gente ainda demoraria um ou dois anos para avançar neste tema”, conclui Marcel.
Conjunto de entregas
“Nós ficamos muito felizes com o conjunto de entregas, a gente achou as entregas bastante relevantes.”É assim que o diretor do MDIC, Alessandro França Dantas, avalia o primeiro ano da ENIMPACTO. “O que foi feito no decorrer desse ano, na verdade é um alicerce para que a gente comece a ousar mais a partir do ano que vem”, opina.
Além da proposta de Sociedade de Benefícios — que aparece como favorita para contemplar os negócios de impacto –, a ENIMPACTO avançou em outros flancos. Neste ano, o programa de aceleração do governo federal, InovAtiva Brasil, contou com 15 startups de impacto social e ambiental. O programa é uma parceria do Sebrae com o MDIC.
Outro avanço que desponta para 2019 é a estruturação do fundo para apoio a negócios de impacto fruto de um acordo de cooperação técnica entre BNDES, Fundação Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Sebrae. Segundo fontes no BNDES, já estão definidos o perfil do gestor do fundo, ainda a ser selecionado, sua estrutura de governança e uma descrição das características de negócios a serem apoiados. Todavia, essas definições ainda serão submetidas à apreciação das instâncias decisórias e, portanto, mais detalhes não podem ser divulgados.
Um tema de também substantivo progresso foi o de Fundos Patrimoniais, também conhecidos como endowments. Estes fundos são formados, geralmente, a partir doações de recursos ou bens com o objetivo de financiar atividades de organizações públicas ou não, tornando-as mais independentes da captação por projetos com governos ou empresas. A ENIMPACTO apoiou toda a mobilização da coalizão para Fundos Patrimoniais. O projeto foi aprovado tanto na Câmera quanto no Senado em dezembro, no apagar das luzes da legislatura, e seguiu para chancela presidencial.
A partir de 1 de janeiro, assume enquanto presidente Jair Bolsonaro (PSL) e sua nova equipe econômica, liderada pelo “posto Ipiranga”, Paulo Guedes. Dentre as medidas anunciadas na transição, uma afetará a ENIMPACTO diretamente: a extinção do MDIC e sua incorporação no “super-ministério” da Economia.
A estrutura do MDIC passará a compor duas secretarias especiais do ministério da Economia: a de comércio exterior e a de produtividade e competitividade industrial. Segundo fontes do MDIC, a atual secretária de inovação migraria para a secretaria especial de produtividade e competitividade industrial. Como a ENIMPACTO é, hoje, presidida pelo MDIC, toda sua estrutura se move também para lá.
A expectativa é que as discussões continuem nesta nova estrutura. “Está tudo ainda muito nebuloso, porque o segundo e terceiro escalões dos ministérios estão em processo de definição e está ainda muito solto”, comenta Marcel Fukayama, com a expectativa de confirmações sobre a quais as estruturas receberão a ENIMPACTO a partir de fevereiro. Todovia, o decreto que cria a estratégia confere prazo de 10 anos para sua aplicação, estabelecendo-a como política de Estado. “Isso dá uma tranquilidade em termos de continuidade. Mas, como é um órgão que foi extinto, que é o MDIC, isso permitiria uma reedição do decreto e, consequentemente, algumas mudanças nele.”
Outro ponto delicado é a possibilidade do fim do SIMPLES. Estudos do Ipea liderados por membros da equipe econômica de Bolsonaro indicam a redução e possível extinção de benefícios dados à pequenas empresas, o que poderia afetar diretamente startups e negócios de impacto.
O SIMPLES é um regime de tributação que unifica impostos federais, estaduais e municipais em uma cobrança única. Segundo estudos do Sebrae, o programa chega a reduzir 40% da carga tributária de micro e pequenas empresas.
Acessar capital para fazer o negócio avançar é a hora da verdade para a maioria dos empreendedores. E assim é porque buscar investidores de forma segura e adequada requer tempo e exige preparo e planejamento. Definitivamente coloca à prova competências importantes para o sucesso do negócio.
Captar não é uma ciência. Não tem receita de bolo para ser replicada em escala industrial. Captar é uma arte que envolve certamente uma inteligência estruturada. Para chegar lá, é um dever sempre considerar que, no fim do dia, estamos lidando com expectativas humanas e tudo o que isso significa em termos de complexidade.
Nos artigos anteriores, aprofundamos as 3 características principais do Vale da Morte – volatilidade, nebulosidade e incerteza. No artigo de hoje, vamos falar sobre elementos essenciais para elevar as chances de sucesso em uma captação neste contexto.
Passo 1 – Preparar-se para captar.
Se você quiser crescer mais velozmente, tenha certeza que vai precisar de recursos de terceiros. Portanto, preparar-se e preparar as pessoas que estarão engajadas no processo é vital. Muitas vezes interagimos com empreendedores que demonstram estar em busca de recursos sem haver feito o “dever de casa”.
Passo 2 – Estude e compreenda as diferentes fontes de recursos existentes.
Quais são os diferentes atores que poderiam financiar sua startup? O que eles têm feito? Quais as suas teses de impacto e de investimento? Porque você entende que são interessantes para seu negócio? Dinheiro não é tudo. O que virá além dele como um ativo que pode gerar valor para sua startup? Pode ser conhecimento técnico, gestão, network, tecnologia, sinergia de portfólio com as investidas já existentes, entre outros.
Passo 3 – Entenda qual é a sua fonte de recursos
Descubra qual dessas fontes é a mais adequada para o estágio e o perfil do seu negócio. Hierarquize todos os que foram mapeados em uma lista e foque nos top 3.
Passo 4 – Tenha um bom storytelling.
A narrativa precisa ser coerente e consistente. Qualquer investidor vai querer saber em detalhe quem é você e o seu time, como você gera e captura valor no seu modelo de negócios, porque que você precisa do dinheiro, como ele vai ser utilizado e que diferença fará no negócio. O investidor também está interessa em saber o quanto você conhece sobre o mercado que está atuando e seus riscos inerentes. Quanto mais claro for seu storytelling e quanto mais rico em evidências, caso você já possua algumas, mais poderoso é o seu pitch. E lembre-se, menos é mais. Não ultrapasse 12 slides.
Passo 5 – Conte a sua estória em números.
Eles dão consistência ao seu modelo e a sua visão de futuro. Números são o reflexo de uma história em desenvolvimento. Ter um fluxo de caixa estruturado, no caso da Din4mo, nos interessa mais pela coerência que percebemos entre a narrativa que o empreendedor nos conta e como ela está espelhada nos números do que a certeza de que esses números serão performados. Sabemos que não há certezas, mas queremos perceber a competência do empreendedor em conectar seu sonho com o negócio. Uma planilha bem feita ajuda a sustentar boas conversas e estressar premissas e cenários.
Passo 6 – Esteja ciente do timing de negociação.
Mesmo quando cumprimos os passos anteriores, a negociação pode exigir muito e eventualmente os prazos teimam em não ser os que esperávamos. Várias decisões difíceis terão que ser tomadas: Qual o valor do negócio? Quais serão as regras da sociedade e as responsabilidades de parte a parte? Tenha sangue frio e seja honesto. Não dá para enrolar.
Passo 7 – Saiba cuidar bem do recurso que chegou e do novo investidor.
Ele não só está embarcando no seu projeto de futuro como pode ser um aliado fiel na jornada que passam a trilhar juntos.
No próximo artigo, iremos aprofundar um modelo específico de captação que tem evoluído positivamente como fonte de capital semente: o crowdequity.
Segundo o IBGE (2016), no Brasil, negros representam 75% da população mais pobre, incluindo os que se autodenominam negros (pretos e pardos). Naquele mesmo ano, conforme dados coletados pela organização social TETO Brasil nas favelas de São Paulo, 70% de seus moradores eram negros.
Publicado em setembro, o relatório Emergência Política Periferia trata justamente de aspectos dessa realidade brasileira. Desenvolvido pelo Instituto Update com parceria da Fundação Tide Setubal e da Ford Foundation, a publicação busca dar visibilidade à iniciativas de inovação política nas periferias de cinco capitais brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Brasília e Belo Horizonte.
A pesquisa dialoga com aproximadamente 400 iniciativas ligadas à política institucional, ONGs, coletivos informais e indivíduos. Destes, há entrevistas em profundidade com cerca de 100 iniciativas. Resultados de um trabalho de campo feito durante 45 dias por cinco pesquisadores e cinco produtores locais, entre março e agosto de 2018.
Jéssica Cerqueira foi uma das pesquisadoras envolvidas no desenvolvimento do relatório. Ela é produtora cultural, gestora de projetos, turismóloga e educadora popular. Também compõe as Adelinas, coletivo autônomo de mulheres pretas. Em entrevista à Aupa como parte da série Qual é a força afro-brasileira no ecossistema de impacto?, Jéssica reflete sobre os resultados da pesquisa, sobre a ancestralidade da cultura africana e da necessidade de entendermos a periferia em sua pluralidade e da ancestralidade da cultura africana.
AUPA | No relatório, vocês destacam a importância da ancestralidade, com o resgate da identidade e do entendimento do indivíduo socialmente. Como você vê esse impacto diante deste resgate da ancestralidade?
JÉSSICA CERQUEIRA | Acredito que, quando falamos sobre identidade, estamos falando de pessoas negras e pessoas periféricas. Entendendo que pessoas periféricas, em sua maioria, são pessoas negras; apesar de, claro, termos pessoas brancas na periferia também. Estamos falando, também, sobre como se constituem esses territórios. Eu compreendo que o resgate da ancestralidade e o entendimento da nossa identidade estão diretamente interligados ao entendimento do que somos nessa construção de país que temos e também a um processo de resgate da autoestima ou de chegada à autoestima. Porque nós não temos a nossa história real disponível. Na verdade, o que temos é a história que está sendo contada nos livros, do processo de escravidão, mas não há a história contada do ponto de vista dos africanos. Ao resgatar a ancestralidade, conseguimos entender que o imaginário coletivo que temos de pessoas negras foi inventado e criado para que a escravidão pudesse dar certo. Conseguimos entender que não somos apenas o que está sendo colocado pela história. É extremamente necessário que todos conheçam o passado para sabermos para onde estamos indo e o que precisamos para poder sair desse lugar onde fomos colocados. É algo a se pensar o fato de que vivemos em um país que, em sua maioria, negro, mas cuja cultura exclui e coloca essa população num lugar subjugado. Essa consciência da ancestralidade, em algum momento, baterá forte. Vemos essa batida de reconhecimento e pertencimento acontecer quase que diariamente.
‘Há um provérbio africano que diz que ‘enquanto a caça não conversar com a própria história, os leões sempre serão glorificados’.”
AUPA | E é uma violência que está tão intrínseca, afinal, estamos falando também de racismo – que até a autodeclaração das pessoas acaba sendo influenciada. Muita gente não tinha se percebido negro até pouco tempo atrás.
JÉSSICA CERQUEIRA | Eu conheço pessoas que têm 40, 50, 60 anos e que estão se reconhecendo negras, hoje. Passaram uma vida inteira sem entender que fazem parte da população negra e que sofreram diversos tipos de preconceito e nunca entenderam que aquilo era racismo. Entendiam que aquilo era algum tipo de preconceito ou alguma coisa que você não dá nome. Só depois que se compreende a identidade que se tem, é possível entender que, na realidade, o que aconteceu foi racismo. Como não se sabia nem quem se era, não era possível entender o que foi aquele momento vivido. Então, o projeto de racismo é muito bem arquitetado, pois não se consegue, ao menos, se entender.
AUPA | E é algo que dói no ser, em essência, quando percebe-se que não consegue ascender socialmente por causa do racismo, que isto está na estrutura da sociedade. E já tem 500 anos que acontece essa lógica…
JÉSSICA CERQUEIRA | Há um provérbio africano que diz que “enquanto a caça não conversar com a própria história, os leões sempre serão glorificados.” A história sempre foi contada pelo lado vencedor, a gente precisa ver o outro lado também. Podemos elencar, para exemplificar, os movimentos que sempre aconteceram desde que começou a escravidão, como as revoltas, mas isso nunca é contado. No nordeste brasileiro, houve um monte de revolta e a gente pouco sabe delas. Eu mesma sei muito pouco, sei uma coisa ou outra, só. São revoltas negras, de pessoas que estavam escravizadas. É muito longo o processo.
AUPA | O relatório abrange as periferias de cinco cidades brasileiras. Fale um pouco sobre isso, por favor.
JÉSSICA CERQUEIRA | Estivemos em cinco cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Brasília e Belo Horizonte. E foram mais de cem conversas, 45 dias só fazendo campo – foi bem intenso e rico. Mas ainda assim, a gente não conseguiu contemplar todo o Brasil. Fomos a cinco cidades e o Brasil é enorme, porém. Fomos às periferias urbanas, há muitas outras periferias também.
AUPA | A pesquisa acaba sendo uma narrativa também. Como que você vê o impacto do trabalho? Afinal, de São Paulo temos uma visão muito do eixo Rio-São Paulo somente. Como é para você apresentar esses novos Brasis por intermédio da pesquisa?
JÉSSICA CERQUEIRA | Foi bom um “sair da caixa”, pelo menos para mim. A gente tem muita margem de conhecimento de São Paulo-Rio, ali Minas Gerais, no máximo, porque são as regiões mais próximas. A gente sabe que, dentro do Brasil, as regiões que têm uma economia com mais movimento são capitais com muito mais recursos e também com muito mais desigualdades, por conta da distribuição de renda. Mas enxergar outras periferias, para além deste eixo, foi extremamente importante para conseguir perceber, de fato, as diversidades. Foi possível observar, também, outros problemas comuns que existem tanto em São Paulo, quanto em Recife e em Brasília. Brasília é uma cidade bastante jovem, que tem 58 anos. Ceilândia e as outras periferias de Brasília, por exemplo, que formam as cidades-satélites, são jovens também. Existe, ainda, um processo de identidade muito recente por lá, porque a grande maioria das pessoas que mora em Brasília, que tem mais de 50 anos, não nasceu ali. São pessoas que vieram das regiões Nordeste e Centro-Oeste, que foram trabalhar na construção de Brasília e constituíram família. Desta forma, sair do Sudeste é bem importante, porque aqui temos uma visão muito restrita de mundo.
AUPA | No relatório destacam-se os espaços de cultura como espaços de formação política. Fale um pouco sobre isso, por favor.
JÉSSICA CERQUEIRA | A cultura é uma linguagem que conseguimos partir de/para todos, não existe um intrincamento. A cultura consegue ser feita a partir de cada uma dessas pessoas. Quando se fala de maracatu e Recife, por exemplos, conseguimos entender a cultura como formadora de identidade. Nas periferias, as expressões culturais também são todo um conteúdo formador político, formando pessoas que estão pensando a partir da cultura. E é nesse contexto que entram os slams, o rap, o funk, o samba. Esses são locais onde o questionamento e fala, se darão e isso construirá novos sujeitos políticos. Os slams são muito fortes, principalmente no Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo), assim como no Recife também há o slam das minas. São locais superimportantes, onde, por exemplo, hoje está sendo discutida grande parte das questões contemporâneas da sociedade, como questões de gênero, raça e de sexualidade. Estar presente dentro desse processo de batalhas trata das formações de alguma maneira. Então, essa forma de agir e pensar vai constituindo outros lugares de construção. Entendendo que, quando se fala de construção de sujeitos políticos, fala-se de construção de pessoas que estão pensando o seu lugar no mundo. Por isso, que a gente volta no tema da africanidade. A cultura, de fato, abre o caminho para tornar muito mais fácil o contato com esse assunto, que vem sendo intensamente debatidos na sociedade e estão sendo teorizados dentro da academia. A sociedade como um todo, está discutindo, o tema, e com isso, conseguindo construir conceitos e conhecimentos que, num futuro não muito distante se tornarão livros.