
À frente do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), Maria Célia Meirelles Toledo Cruz tem uma trajetória rica em experiências e ensinamentos para o setor. Economista de formação, ela se autodenomina como “exconomista,” e já foi diretora de ONGs no Brasil e pelo mundo. Nessa entrevista exclusiva para AUPA, feita antes da pandemia, ela fala sobre a importância da mulher no ecossistema de impacto, os filhos e um mundo que demanda inclusão e reconhecimento da diversidade, os preconceitos e o que a move hoje.
Atuação
– Diretora do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) desde 2012.
– Diretora da Ashoka Brasil, Paraguai e Canadá e Managing Director da Ashoka Global Fellowship (2002-2011).
– Trabalhou no Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS, 2000-2002) no tema fundações comunitárias.- Criou a Philantropics, empresa de consultoria em captação de recursos, em 1994.
– Trabalhou como Diretora de Desenvolvimento Institucional da EAESP/FGV (1994 a 2000).
– Graduada em Economia pela FEA/USP.
– Mestre pela EAESP/FGV, com intercâmbios na ESSEC, France e York University, Canadá.
– É coautora do livro “Captação de Diferentes Recursos para Organizações Sem Fins Lucrativos” (Global, 2000).
AUPA – Como é ser uma liderança feminina enquanto ainda há mais homens nos cargos de liderança? E como o ICE e a Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto lidam com essa situação?
Célia Cruz – Dentro do campo das ONGs, onde também atuo, há presença muito forte das mulheres. Mas, para a minha surpresa, li recentemente uma pesquisa que indicava grande presença das mulheres, mas não nos cargos de liderança. E quando a gente vai para os conselhos, a situação também se repete. No caso do ICE, há várias associadas e, cada vez, mais estamos tentando trazer mulheres e jovens para a atuação, mas eu ainda não tenho um equilíbrio de gênero, mesmo implementando essa agenda. No conselho da Aliança é ainda menor. No do ICE são seis: Renata de Camargo Nascimento, Ana Helena de Moraes Vicintin, Luiza Nascimento, Karen Baumgart Srougi e Isabela Pascoal Becker, enquanto que na Aliança temos duas, Maria Alice Setubal e Alice Freitas, então temos muito a avançar.
AUPA – E no campo de negócios de impacto? Como vê o cenário para as mulheres?
Célia Cruz – A realidade é ainda de predominância de empreendedores homens dentro do campo. Quando decidimos investir em negócios (o ICE fez uma parceria com o BID para investirmos em 16 negócios, em duas chamadas 2017 e 2018), eu tive um empenho muito grande em trazer todas as mulheres que tinham começado um projeto para o campo. A ideia era a gente fazer uma ação para trazer mais empreendedoras para nosso portfólio, mas muitas não avançaram e não finalizaram suas inscrições. Então, é um desafio muito grande dentro do campo. Em um evento do Pacto Global, foi mostrado como ainda é muito baixo o número de mulheres no comando de empresas no Brasil, nossas ações também vão permear essa agenda. Como exemplo, temos uma meta de gênero no Fórum de Investimentos e Negócios de Impacto [o encontro é promovido por ICE, Impact Hub São Paulo e Vox Capital; sua versão on-line ocorrerá entre os dias 31/6 e 1º/7 e, por enquanto, a presencial está remanejada para novembro]. Vou trazer uma lésbica que está olhando para as questões de impacto, além de uma trans para também trazer esse tema. O objetivo é saber o que elas estão sentindo do campo de negócios de impacto. Indagar por que os investidores ainda não têm esse olhar de gênero? Por que a gente ainda não vê tantas empreendedoras? Por que as mulheres, quando empreendem, acessam um capital menor e, quando elas começam a crescer, deixam de acessar um capital maior? Então, acho que tem uma série de temas, mas não só no mundo dos negócios: são questões também presentes no mundo das ONGs, por exemplo, e que precisamos trazer para pensar sobre a presença das mulheres nos cargos de liderança.
AUPA – Como é essa situação dentro da esfera familiar? Sendo mãe de dois homens, como é sua relação com eles para mostrar a importância de um mundo mais inclusivo?
Célia Cruz – Meus filhos são muito conectados à questão dos problemas socioambientais. Eles têm uma mãe ongueira, um pai ongueiro ambientalista e ainda pegaram uma geração em que essa discussão é muito forte, onde as meninas são muito do diálogo e conversam muito mais do que na minha geração. Mas a sociedade ainda é pouco inclusiva. Para a minha surpresa, quando um deles entrou em Ciências da Computação, em São Carlos, na sala com mais de 100 alunos, apenas quatro eram mulheres. Cadê as mulheres na tecnologia? Foi uma coisa que chamou a atenção deles. Eu até falei: “Vai conversar com essas mulheres, fortalecê-las para irem falar em outros lugares”. Se o mundo na minha geração não viu igualdade nas mulheres, pelo menos que os percentuais estejam muito melhores daqui para frente. Eu penso que a geração deles já é mais consciente nessa questão, mas, sempre que posso, trago temas do movimento de mulheres lésbicas, trans e toda a questão da agenda LGBTQI+ – e eles são super defensores.
AUPA – Dentro dos negócios de impacto é comum vermos muitas mulheres liderando os negócios, mas quase sempre são os homens os porta-vozes. O que acha disso?
Célia Cruz – Olha, isso é tão absurdo. Eu tenho mais concordâncias do que soluções. Por exemplo, a gente é investidor de um negócio formado por um casal (sócios), com habilidades muito complementares. Toda vez que a gente fala, fazendo perguntas específicas para a mulher, ela começa a falar e ele começa a falar em cima, a ponto de a gente chamar a atenção. É muito comum: quando uma mulher empreende um negócio, muitas vezes, é o marido que larga o emprego para ir trabalhar no negócio dela e acaba assumindo um lugar de empreendedor. Existe também o negócio que o marido montou e a mulher assumiu, mas, de fato, é mais comum o contrário. Então, é um tema importante para debater.
AUPA – No caso dessas mulheres que estão iniciando seus negócios: o que você poderia dizer a elas?
Célia Cruz – As mulheres precisam acreditar mais nelas. A gente vê, toda hora, histórias de mulheres que fazem o mesmo curso que os homens e, quando você pergunta “O que você aprendeu?”, ela responde “Aprendi 80%”, enquanto o homem diz “Aprendi 110%”. Então, é preciso fortalecer as mulheres, pela sua capacidade. É preciso empoderá-las. Além disso, há uma questão de arriscar mais também, pois acho que os homens acabam arriscando muito mais. Por exemplo, quando falamos de acesso ao capital, o Itaú diz que as mulheres acessam recursos até R$20 mil, mas, quando você está indo para outro volume, elas já não acessam, elas têm medo. E o banco diz: “Poxa, deve ser por causa do nosso gerente, vai ver que é porque a gente é meio machista na sala”. E o departamento de microcrédito do Itaú, que é liderado por uma mulher, até está tentando fazer uma série de ações para auxiliar as mulheres no seu portfólio, mas estão com dificuldades para ampliar.
As mulheres precisam acreditar mais nelas. A gente vê, toda hora, histórias de mulheres que fazem o mesmo curso que os homens e, quando você pergunta “O que você aprendeu?”, ela responde “Aprendi 80%”, enquanto o homem diz “Aprendi 110%”.
AUPA – Você trabalhou na Ashoka no Brasil e depois atuou fora do país. Quais as diferenças entre o cenário brasileiro e o de fora?
Célia Cruz – Sim, fiquei cinco anos como diretora na Ashoka no Brasil, daí eu fui para Washington (Estados Unidos) e, depois, para Ashoka global, onde essa agenda de mulheres também é muito presente. Eu estou lembrando de dados da África, que eram muito semelhantes ao que falamos há pouco.Trabalhamos a questão da agricultura e do microcrédito e era a mesma história sobre o acesso feito por homens aqui. A gente tinha um projeto muito grande que era para tentar mudar o percentual de mulheres empreendedoras na agricultura e tínhamos esse mesmo entrave. Quem acessava o dinheiro era o marido, quem tinha a conta bancária era o marido.
AUPA – E a experiência no Canadá? Como foi viver lá e o que podemos aprender ou ensinar entre os dois países?
Célia Cruz – Eu acho que o Canadá é um país com cuidado de narrativas. Não vou dizer que não existem problemas em relação às mulheres no Canadá, ainda mais em Toronto. O país também tem 55% da população imigrante, então é muito difícil eu dizer “a população canadense”, porque tem um monte de canadenses diferentes, de origem indiana, paquistanesa, chinesa, brasileira, tem de tudo e que trazem traços culturais diversos. Eu vi, por exemplo, uma morte, daquelas histórias, porque a filha teve um caso e daí matou todo mundo. Tirando esse lado, tem também o lado da gente pegar o empoderamento da fala. O primeiro ministro canadense (Justin Trudeau), em qualquer fala global, está trazendo o tema de respeito às mulheres, ele fala das filhas, é um cara brilhante. Assim que ele foi eleito, foi impressionante, porque era o mesmo mês que Michel Temer estava montando o seu ministério predominantemente com presença masculina e com pouquíssimas mulheres – e o de Trudeau tinha 50% de mulheres, tinha gays, tinha diversidade. O que é uma coisa óbvia para ele, uma pessoa que tem essa consciência de igualdade. Enquanto isso, no Brasil, estava lendo que mulheres deputadas ainda recebem abuso e muito mais violação.
AUPA – E como foi voltar ao Brasil e se deparar com outra narrativa?
Célia Cruz – Quando eu voltei do Canadá, me sentia tão incomodada com essas piadinhas no estilo “Perco o amigo, mas não perco a piada” e isso para a gente é uma coisa horrorosa. Como que não perde a piada? Tem que perder, sim, você não está no lugar do outro. O outro está sentindo a sua piada. Você está se fazendo essa pergunta? Então, eu conversava muito isso com meus filhos. De cuidar e de ter empatia com quem escuta a piada. Se para o outro pode ser de alguma maneira agressivo ou incômodo, não deveria nunca fazer uma piada, nem brincando. O brasileiro tem uma coisa até descuidada, acha que não perde a piada. Eu já tive discussões com sobrinhos e eu acredito que até hoje eles foram para outro lugar muito mais consciente. Uma sobrinha que está cursando Direito é super ativista para o direito das mulheres e ela não vai mais achar graça de uma narrativa que não cuida da fala em relação às mulheres. Eu acho que a gente mudou de lugar: é essa a sensação.
Como que não perde a piada? Tem que perder, sim, você não está no lugar do outro. O outro está sentindo a sua piada. Você está se fazendo essa pergunta?
AUPA – E qual a liderança feminina que lhe inspira?
Célia Cruz – Uma mulher que me inspira muito nesta agenda que estamos falando é a Amalia Fischer, coordenadora e co-fundadora do Fundo Elas. Ela viu a questão da ditadura em outros países. Veio da Nicarágua, depois foi para o México e agora está vendo isso aqui no Brasil. E vem dessa questão da violação das mulheres. No caso dela, é uma mulher lésbica que criou o fundo ELAS, para apoiar mulheres lésbicas, trans, de forma individual, coletiva, numa ONG. Ela me inspira muito. Eu a conheci, quando ela estava criando o fundo. Eu achei a visão dela muito inovadora. Eu estou falando de 20 anos atrás. E, hoje o fundo é grande, movimenta R$8 milhões por ano e está fortalecendo justamente essas organizações mais frágeis. Eu fico muito orgulhosa do trabalho que a Amalia está fazendo, de modo a reconhecer muitas mulheres.
Aupa – E o que lhe move hoje?
Célia – Meu propósito hoje está nos negócios de impacto, mas já tive como propósito apoiar empreendedores sociais e a questão das ONGs e seu fortalecimento com captação de recurso. Outro dia, uma pessoa me falou que “Os valores da gente, a gente carrega para a vida”, mas uma coisa são os valores, outra é o propósito. Meu propósito nesse momento está nesse ecossistema de investimento, fortalecendo sempre a inovação social e as ideias inovadoras que possam ter cada vez mais impacto social.
Célia Cruz foi uma das protagonistas do especial #AupaMulheres. Na galeria abaixo, você pode conferir cada uma das lideranças femininas que participaram desta ação. As ilustrações foram criadas pela artista plástica Victoria Roman – conheça seu trabalho em @viccroman e linktr.ee/vilustra .
Talvez não existam palavras suficientes e significativas que me permitam agradecer a vocês pela ILUSTRAÇÃO E MÁTERIA MARAVILHOSA. Mas é tudo que posso fazer, usar palavras para agradecer.
Suas ajudas e apoio são muito importantes para mim e para todas as Meninas Mahin, e nunca vamos esquecer tudo que vocês fazem por nós. GRATIDÃO!! Com todo o carinho e de coração eu agradeço, e para sempre minha gratidão.