Onde havia esporte, agora há um vazio. Onde tinha luta por educação, agora existe combate contra a fome. E onde já existia exclusão digital, agora há uma carência ainda maior de recursos. O jogo mudou nas instituições sociais ligadas ao esporte. A pandemia de Covid-19 e o consequente adiamento da Olimpíada de 2020 mudaram profundamente o perfil de atendimento desses locais. Além disso, surgiram novas dificuldades, inclusive financeiras. Mas nada está parado.

Jorginho e as crianças do instituto Bola pra Frente. Crédito: Divulgação.

O Instituto Bola Pra Frente é um dos exemplos de resistência no Rio de Janeiro. Ele sofreu com as enchentes que atingiram o estado, no começo do ano, e logo depois teve que enfrentar a pandemia. Mas conseguiu se manter e já faz planos para o futuro, inclusive com a conclusão de um prédio novo.

E tudo começou com um sonho do adolescente Jorge, aos 11 anos, que imaginava a Disney em frente à casa dele. Ele virou o lateral Jorginho, titular na conquista do tetracampeonato do mundo, em 1994. E fundou a própria “Disney”, um instituto que tem atividades esportivas, com método e programa pedagógico próprios, o “Cruzamento Perfeito”.

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Gustavo Kuerten, o Guga, na icônica comemoração do tricampeonato em Roland Garros (França).

Outros ex-atletas têm histórias parecidas. Depois de brilharem no esporte, eles resolveram fundar institutos que usam o esporte como meio de transformação social. Gustavo Kuerten, referência mundial no tênis, criou um instituto que leva o nome dele em Santa Catarina. O local atende inclusive crianças especiais, pois Guga tinha um irmão com paralisia cerebral. Os irmãos Lars e Torben Grael, ídolos olímpicos, também possuem um projeto social. O objetivo deles é democratizar o acesso à vela, esporte que já rendeu 18 medalhas para o Brasil em Olimpíadas.

O adiamento da Olimpíada
Nenhum desses institutos tem foco no alto rendimento. O objetivo final não é formar um grande jogador de futebol, tenista profissional ou velejador. A missão é fazer com que o esporte traga benefícios para a educação e a formação de crianças e adolescentes. Mas, naturalmente, uma Olimpíada traz algum benefício para esses projetos: “Em anos olímpicos, o esporte fica em evidência. Temos ajuda de diversos setores, tem espaço na mídia e se fala mais disso nas empresas patrocinadoras”, explica Joana Dutra, gerente-executiva do Projeto Grael

"Temos oportunidades de falar sobre os benefícios dos valores esportivos, mas agora perdemos esta possibilidade”,

lamenta Joanna Dutra diante do adiamento da Olimpíada de Tóquio – agora os Jogos estão marcados para 23 de julho de 2021.

O adiamento da Olimpíada não é o pior problema para esses institutos. O que realmente causou transtornos e dificuldades foi a própria pandemia de Covid-19. Todas as atividades presenciais foram canceladas em meados de março. Então, os institutos partiram para dois tipos de ações. Primeiro, para cumprir a missão educacional, tentaram adaptar as atividades para a internet. Depois, para manter o apoio às famílias, ajudaram no combate à fome, principal problema dos alunos nessa época de crise social.

Exclusão digital

Fazer essas mudanças não tem sido simples. A pandemia deixou claro como a exclusão digital é grave no Brasil. Recentemente o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou que uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet – isso representa cerca de 46 milhões de brasileiros excluídos digitalmente.

A pandemia escancarou esse problema, que tanto afetou os institutos sociais nos últimos meses. O Instituto Bola Pra Frente tentou realizar atividades pelo Facebook, mas não conseguiu atingir as crianças. “Vimos como a como população da favela é excluída digitalmente. As crianças não têm acesso ao computador. Algumas acessam só uma vez por mês. E não tem celular ou computador. Tentamos fazer encontros esporádicos no Google Meet, mas não deu certo”, conta Renata Siqueira, gerente do Instituto Bola Pra Frente.

O Projeto Grael também esbarrou em dificuldades causadas pela tecnologia, mas encontrou uma saída provisória: atividades educacionais são enviadas para os alunos pelo aplicativo WhatsApp: “Cada turma tem um grupo com um professor e um coordenador. A gente grava os conteúdos e manda. Quando o aluno tiver Wi-fi, ele baixa e vê”.

Lars Grael em evento no Instituto Grael. Crédito: Divulgação.

O projeto também teve dificuldades para contar com a participação dos alunos nas transmissões ao vivo. Mas, mesmo assim, continuou fazendo as “lives” para enviar tudo aos alunos por WhatsApp. O projeto também manteve contato com as famílias para tirar dúvidas sobre os auxílios concedidos pelo governo e até lidar com casos mais graves, de violência doméstica e assédio. Esses crimes aumentaram durante a pandemia e se juntaram a outras mazelas da crise, como o desemprego e a falta de alimentos.

Doações
O combate à fome virou um dos principais focos dessas organizações. O Instituto Gustavo Kuerten, por exemplo, tem distribuído cerca de 150 cestas básicas por semana. O Projeto Grael já entregou, ao todo, mais de 1.200 cestas básicas. E o Instituto Bola pra Frente encontrou outra forma de ajudar as famílias: “Nossos parceiros queriam doar cestas básicas. Mas pensamos que, se a gente abrisse o portão para entregar, ia criar aglomeração, era perigoso. E, muitas vezes, a pessoa recebe um alimento que não queria, porque já recebeu em outra cesta básica. Então, a colocamos em um cadastro da campanha ‘Em Campo com a Comunidade’, que dá R$ 300 em compras em um supermercado”, explica Renata. Essa campanha ajudou mais de 100 famílias nos meses de maio e junho. Em julho a expectativa é dobrar essa quantidade.

Joana Dutra, gerente-executiva do Projeto Grael. Crédito: Divulgação.
Renata Siqueira, gerente do Instituto Bola Pra Frente. Crédito: Divulgação.
Silvana Medeiros, superintendente executiva do Instituto Gustavo Kuerten. Crédito: Divulgação.

Impacto financeiro
É claro que manter a existência desses institutos e ainda fazer doações tem um custo. Em épocas normais, as organizações se apoiam principalmente em parcerias com empresas e na Lei de Incentivo ao Esporte. Em 2020, esses parceiros privados estão sendo essenciais para arrecadação de cestas e outros itens doados.

Já a Lei de Incentivo ao Esporte tem uma característica que foi importante para manter os institutos na ativa neste momento, mas também causa uma grande preocupação para o futuro. O valor dessa lei é arrecadado no começo do ano, através do pagamento de impostos – empresas investem parte do que pagariam no Imposto de Renda em projetos esportivos aprovados pelo governo. Portanto, grande parte do orçamento de 2020 já estava arrecadado e distribuído. Mas a crise econômica gerada pela pandemia fará com que as empresas tenham dificuldades para pagar os impostos a partir de agora.

“Arrecadamos os valores para esse ano, mas não sabemos como será em 2021. É uma preocupação”,

confirma Silvana Silveira Medeiros, superintendente executiva do Instituto Gustavo Kuerten.

A nova realidade
Outro desafio é preparar os institutos para a retomada das atividades. Apesar da pandemia ainda não estar controlada no Brasil, a maioria das atividades já voltou a ser realizada, com adaptações. No Instituto Gustavo Kuerten o retorno pode acontecer em breve: “A gente só depende do prazo de retorno das escolas. Quando as escolas voltarem, a gente vai voltar. Por enquanto tem uma previsão para 3 de agosto. A gente vai se adaptar com álcool em gel e distanciamento, talvez com menos crianças”, explica Silvana.

Guga e as crianças no Instituto Guga Kuerten. Crédito: Divulgação.

O Projeto Grael ressalta que não tem pressa para voltar, mas comemora, porque a prática da vela permite um retorno mais tranquilo: “Não é um esporte de contato, então a gente consegue manter a distância entre os praticantes. E já eram turmas pequenas, de 10 a 12 pessoas, sempre em espaço aberto. Estamos acompanhando o processo de reabertura na Europa para ver como as escolas estão fazendo e como é possível adaptar”, conta Joanna.

O Instituto Bola Pra Frente terá mais dificuldades nesse sentido, porque os alunos costumam praticar muitos esportes coletivos. Então, em 2020, o retorno será apenas com as atividades educacionais adaptadas. E com uma dose de otimismo. “A grande questão do momento é: o que vem depois da cesta básica? Isso está sendo construído e ninguém sabe. Mas é uma oportunidade para criar uma base do novo normal. E nós, do Terceiro Setor, podemos ser protagonistas nisso”, conclui Renata. 

As imagens utilizadas nesta reportagem são do período anterior à pandemia causada pela Covid-19.

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