Em meio a todas as crises atuais, uma vem preocupando cada vez mais brasileiros: a falta de água. Recentemente, Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, anunciou que o país está passando pela maior crise hídrica já registrada no país.
De acordo com dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), os rios brasileiros estão com o menor volume médio de água dos últimos 91 anos. Ainda, a ONS projeta que ao menos oito reservatórios de água das principais hidrelétricas do país, podem ficar quase vazios no segundo semestre deste ano. Aliás, medidas de racionamento de água já estão sendo adotadas em cidades nas regiões Sul e Sudeste.
“Não existe somente uma causa, há uma diversidade de motivos para a crise hídrica atual”, afirma Angelo Lima, secretário-executivo do Observatório da Governança das Águas (OGA). Uma das causas da escassez de água é relativa ao elevado consumo e ao desperdício desse recurso em algumas atividades econômicas, segundo ele.
Mas, além de buscar entender as causas da nova crise hídrica, é importante conhecermos possíveis soluções de médio e longo prazos para esse problema que, frequentemente, vem prejudicando tanto a população quanto às empresas e instituições públicas.
No Brasil, especialmente na última década, algumas organizações começaram a oferecer serviços e conhecimento voltados ao uso sustentável da água e a conservação de recursos hídricos. Nesta reportagem, conheça iniciativas sobre estratégias, impactos e desafios na implantação de soluções para a água no país – alinhadas com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6.
Plantar água
O setor agrícola é o que mais consome e desperdiça água potável. Segundo estimativas da Agência Nacional de Águas e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, a agropecuária usa 70% da água tratada no país, porém, quase metade desse volume é desperdiçado – sobretudo, devido às irrigações ineficientes ou mal executadas.
Entretanto, há um paradoxo nesse setor. As culturas que mais consomem água são destinadas majoritariamente à exportação, como a soja e carne, que é uma atividade desenvolvida por grandes produtores rurais. Por outro lado, muitos dos pequenos produtores não têm acesso à rede pública de abastecimento de água e tratamento de esgoto.
O projeto Plantando Águas, da ONG Iniciativa Verde, busca tornar práticas de uso da água na agricultura mais sustentáveis, além de aumentar a segurança hídrica de pequenos agricultores na zona rural da cidade de São Paulo. A organização fomenta a implantação de tecnologias de armazenamento da água de chuva, tratamento e reaproveitamento de efluentes domésticos, entre outras iniciativas.
Marina Souza, porta-voz da ONG, explica que uma das tecnologias usadas no projeto, como a fossa séptica biodigestora, foi desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Essa fossa realiza o tratamento eficiente do esgoto doméstico, possibilitando o aproveitamento da água residual tratada para a rega, por exemplo. Além de ser uma alternativa de saneamento de baixo custo, que contribui para “Evitar a poluição dos corpos d’água e solo”, já que o esgoto normalmente não é tratado na zona rural, segundo Marina.
Ainda de acordo com a porta-voz da Iniciativa Verde, as tecnologias propostas pelo projeto ajudam a “Assegurar que o agricultor possa continuar produzindo comida” em épocas secas. Este é um ponto fundamental, pois, períodos prolongados de falta de chuva e temperaturas extremas estão cada vez mais frequentes – um desequilíbrio climático que deixa a produção agrícola vulnerável, colocando em risco, principalmente, agricultores de baixa renda.
“Então, ter um sistema próprio de captação e armazenamento de água é muito valioso e impacta diretamente na atividade do pequeno produtor”, destaca Marina, tendo em vista que a segurança hídrica resulta em segurança alimentar e econômica. Mais de 430 famílias paulistas já foram beneficiadas pelo projeto, residentes em assentamentos rurais, unidades de conservação e pequenas propriedades agrícolas.
Outros fatores que reduzem a qualidade e quantidade de recursos hídricos são a degradação do solo e a falta de cobertura vegetal, incluindo o ritmo acelerado de desmatamento. Por isso, a Iniciativa Verde também promove a capacitação dos agricultores sobre técnicas de cultivo agroflorestal, que aliam produção de alimentos com restauração de florestas.
De acordo com estudos da Embrapa, os sistemas agroflorestais aumentam a disponibilidade de águas superficiais e subterrâneas. Pesquisas também indicam que há uma relação direta entre preservação de florestas e produção de chuva.
Dessa forma, as técnicas propostas pelo Plantando Águas podem contribuir tanto para o uso sustentável da água e a conservação de recursos hídricos, quanto para a mitigação de impactos das mudanças climáticas na agricultura e sociedade.
Cultivar mudanças
O setor industrial é o segundo maior consumidor de água potável, correspondendo a cerca de 45% da demanda em algumas regiões do país. Outro problema grave é que muitas indústrias não tratam seu esgoto e o despejam diretamente em mananciais hídricos.
Apenas em São Paulo, aproximadamente 10 milhões de litros de esgoto industrial não tratado são despejados por hora em rios e lagos, revelou um estudo da Fundação Getúlio Vargas. Aliás, mais de 5000 piscinas olímpicas de esgoto são despejadas na natureza todos os dias no país.
Entretanto, a implantação de tecnologias de tratamento e reúso dos efluentes em indústrias ou grandes empreendimentos pode reduzir significativamente o consumo e a poluição de águas. Segundo Fernando Pereira, CEO da General Water (GW), o reúso de água proveniente do esgoto tratado é uma forma de evitar o uso de água potável, que já se encontra escassa para consumo humano, em atividades industriais que não necessitam do recurso nessa qualidade – tal como em vasos sanitários, sistemas de refrigeração, limpeza de áreas ou máquinas. “Um consumidor típico nosso consegue substituir entre 40% a 70% do consumo de água potável”, devido ao aproveitamento da água de reúso, destaca Fernando.
Outro fator de estresse hídrico é o desperdício gerado em redes públicas de abastecimento de água. Cerca de 40% da água tratada é perdida durante a distribuição devido a vazamentos, erros ou fraude nas redes. Portanto, a instalação de sistemas de abastecimento no local do empreendimento é “muito mais eficiente”, segundo Fernando.
Além de gerar benefícios ambientais, esse conjunto de estratégias ajuda a diminuir a competição por água entre os grandes empreendimentos e a comunidade local, além da possibilidade de gerar benefícios financeiros às empresas. “Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, temos tido crises hídricas cíclicas – que vão ficar cada vez mais exacerbadas por conta das mudanças climáticas – e nossos clientes já estão preocupados” em relação aos impactos socioambientais da falta de água, explica o CEO.
Essa preocupação parece estar se espalhando pelo setor industrial, de modo a gerar vontade de mudança. O projeto Aquapolo Ambiental, por exemplo, é uma iniciativa de indústrias da Grande São Paulo com a concessionária Sabesp, que destina efluentes tratados da Estação de Tratamento ABC para reúso no Polo Petroquímico de Capuava.
A iniciativa contribui para a segurança hídrica das indústrias, já que o fornecimento é assegurado mesmo durante períodos de estiagem, além de aumentar a disponibilidade de água potável na região urbana e diminuir o volume de retirada dos mananciais hídricos, segundo Marcio José, CEO do Aquapolo.
Atualmente, esse é o maior projeto de reúso de água no Brasil – reaproveitando um volume equivalente ao consumo de cerca de 500 mil habitantes. “Há alguns estudos em andamento e acreditamos que novos projetos semelhantes serão implantados futuramente”, aponta Marcio.
Colher sustentabilidade
Vale dizer que a Organização das Nações Unidas alertou recentemente que a seca pode ser a próxima pandemia – podendo afetar diretamente a saúde de pessoas ao redor do mundo, ou indiretamente, através da insegurança alimentar e do aumento nos preços de alimentos.
No Brasil, o baixo volume de água nos reservatórios de hidrelétricas também está gerando uma crise energética, tendo em vista que essa é a principal fonte de energia no país. A conta de luz já ficou mais cara e medidas de racionamento de energia estão sendo avaliadas pelas autoridades competentes. Vale dizer: manter o horário de verão não evitaria esses impactos.
Assim, a implementação de soluções hídricas de médio e longo prazos é crucial. Mas, alguns desafios ainda precisam ser superados para que tais soluções ganhem escala em território nacional.
“A crise hídrica atual, no fundo, é uma crise de governança”, ressalta Angelo Lima, do OGA. Desde 1997, o Brasil tem uma Política Nacional de Recursos Hídricos avançada, porém, seus instrumentos de gestão não estão sendo igualmente executados nos Estados da Federação. Isso impede a integração de Políticas Públicas com uma visão sistêmica dos problemas e dificulta a previsão de possíveis conflitos pelo uso da água, ele explica.
Marina Souza, afirma que, a partir da experiência da Iniciativa Verde, faltam incentivos financeiros e validação técnica pelos órgãos gestores para facilitar a implantação de tecnologias alternativas de saneamento. A fossa biodigestora da Embrapa, por exemplo, é uma alternativa sustentável de saneamento com mais de 15 anos de comprovação científica, embora ainda não tenha investimento e regulamentação pelo poder público.
Fernando Pereira, da GW, ainda destaca que houve um avanço na regularização do reúso de efluentes tratados recentemente – o qual poderá incentivar mais esse ramo de negócios. Porém, falta uma fiscalização maior pelos órgãos competentes sobre atividades que geram desperdício e poluição de água.
“A água precisa se tornar uma agenda estratégica para a sociedade brasileira e para os tomadores de decisão – afinal, é fator de desenvolvimento social, ambiental e econômico”,
destaca Angelo Lima, secretário-executivo do Observatório da Governança das Águas (OGA).
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