Para começo de conversa, morar é um direito social garantido por lei. Mas os que moram na favela do Vietnã, em São Paulo, por exemplo, não conhecem o que é moradia, nem esse direito. Vivem entre ratos e barracos. Já os moradores de Pinheiros (bairro também da capital paulista) tem moradias, direitos e vivem bem. No meio do caminho está a cidade onde todos habitam, dormem, vivem e morrem. O lar doce lar que abrigou e protegeu milhares de indivíduos contra o Coronavírus, jogou outros tantos milhares na rua. Dados indicam que o número de famílias despejadas na pandemia aumentou em 310% no Brasil. No mundo, cerca de 1/4 da população vive em favelas. E é por isso que a sociedade precisa compreender que morar é um direito conquistado. Está na nossa Constituição Federal, nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas e está no sonho de todo brasileiro. Morar deveria ser tão básico quanto viver, mas sempre há pedras no caminho para viver nas grandes cidades, como São Paulo.
Os obstáculos para conseguir um lugar para dormir, acordar e viver são diversos. As pedras são colocadas pelas mãos do Estado e pelos interesses do mercado imobiliário. Na capital paulista por ambos. A história do país nos mostra que a convivência entre eles sempre gerou gentrificação, entre outros problemas urbanísticos. A própria origem do nome favela, depois da Guerra de Canudos, mostra essa aliança segregacionista. Pelas ordens da recém República Brasileira, os soldados tiraram vidas e casas na Bahia e, quando voltaram, ficaram sem casas no Rio de Janeiro. A sequência de processo políticos urbanísticos higienistas contra casas de cômodos, estalagens, cortiços e contra imigrantes e escravos seguiu em marcha até chegarmos em 2021 e a revisão do Plano Diretor da cidade.
O Plano do mal para seguir ruim
Resumindo: a cidade tem uma lei que determina as diretrizes da ocupação urbana municipal, o Plano Diretor. O último foi feito em 2014 e, este ano, a Prefeitura precisa revisá-lo, ou seja, analisar e perguntar para toda a população, como vamos morar, ocupar e ter direito à cidade. Parques, residências, mananciais, mobilidade e moradias devem ter regras e o plano serve para ordenar e facilitar uma cidade mais democrática, inclusiva, onde a favela, por exemplo, não se torne moradia e ninguém precise dormir na rua. Mas, como sabemos, a cidade é desigual, como traz pesquisa da Rede Nossa São Paulo. Uns vivem com ratos enquanto outros vivem olhando os outros como ratos de suas sacadas com piscinas. Em teoria, municípios e mercado deveriam garantir condições dignas de moradia, como determina a Constituição de 1988. Mas, hoje, o debate entre o lobby de algumas incorporadoras, parte dos vereadores e o Prefeito está centrado em permanecer com o plano de não mudar nada.
A revisão do plano segue passos tortos. Tem que ser votada até o dia 31 de dezembro, mas não conta com respaldo de órgãos da sociedade civil, juristas e especialistas urbanísticos. O urbanista Nabil Bonduki, o relator do plano em 2014, também tece críticas, assim como organizações que reúnem associações de bairro, como Movimento Defenda São Paulo e a Frente São Paulo pela Vida. A maioria pede um adiamento em razão da pandemia, além de irregularidades. Há indícios de inquérito aberto sobre estudo encomendado pela Prefeitura e o Ministério Público de São Paulo orientou a Prefeitura a rever o processo, pois não há participação suficiente apenas por meio digitais. Lembra? Cidade muito desigual significa que há pessoas que não têm onde morar, que dirá ter acesso à internet? Sim, é a realidade de muitos. Além disso, a Justiça de São Paulo suspendeu o contrato de R$3,5 milhões, pois não houve licitação. O mar de problemas e interesses conta ainda com o Secretário Municipal de Urbanismo e Licenciamento, Cesar Boffa de Azevedo fazendo lobby e criando conselhos pouco democráticos. Basicamente, o setor quer construir mais vagas de garagem e pagar menos impostos de outorga onerosa. Assim, ficaria mais fácil construir seus luxuosos e caros duplex em Pinheiros com elevadores sociais separados para os moradores. É um plano desenhado para poucos.
O Plano paralelo e solitário
Mas, na terra arrasada e gentrificada, também existem iniciativas paralelas. O setor de impacto socioambiental tem estruturado propostas junto a iniciativas privadas. Não substituem o Estado, evidentemente, mas caminham no paralelo. O estudo Tese de Impacto Social em Habitação, organizado pela Artemisia, indica que há cerca de seis milhões de deficit quantitativo e cerca de oito milhões de imóveis vagos. Independentemente da demanda ou da oferta em determinados territórios, há mais gente sem casa do que casa para morar, reflexo do fenômeno da desigualdade estrutural e da segregação socioespacial já mencionada. As aceleradoras de negócios de impacto que atuam com moradia, como a Artemisia, fazem parte do que o Estado poderia, ou deveria, fazer ou, pelo menos, articular. As aceleradoras atuam com parceiros do mercado nos flancos da falência do malogrado e paradoxal elo entre o próprio mercado e o estado. O plano tenta unir o sistema em torno de gigantes do setor de construção e busca inovação com impacto para moradia. O case da Vivenda também é um exemplo desse tipo de articulação paralela de investimento de impacto. Gente séria fazendo coisa séria. O plano é ótimo, mas a força pode ser limitada sem a mão forte do Estado. Sem articulação e apoio do Poder Público que poderiam estimular e apoiar a resolução do direito de moradia com atores da sociedade. O impacto socioambiental pode ter efeitos solitários se não juntar sociedade civil, público e privado.
Por isso, ao invés de chamar o mercado da especulação e fazer a política da exclusão em cima do direito de morar, a Prefeitura deveria estruturar uma escuta mais cuidadosa e sem pressa. Assim que as condições sanitárias permitirem, chamar todos à mesa: os movimentos populares de moradia, como Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, aceleradoras de impacto, como a Artemisia, além de entidades urbanístícas comprometidas com a causa no Brasil e, sem dúvidas, o mais interessado nisso tudo, o cidadão paulistano. A pouca participação e um plano enviesado está no objetivo da revisão do Plano Diretor que está sendo articulado nesse momento. A pedra que todos nós colocamos nesse sistema é grande. É preciso tirá-la ou seguiremos projetando favelas com a conivência das mãos do Estado e pelas mãos invisíveis do mercado. Não precisamos apenas de um plano, mas de mais democracia e organizações construindo um novo caminho juntos. A bolha imobiliária dos Estados Unidos, em 2008, ou o caso da Evergrande, na China, em 2021, são dois fenômenos do quanto morar envolve a economia do poder. Atos urbanísticos são atos políticos e, portanto, do interesse de todos. Não haverá cidade melhor se não houver igualdade de direitos para todos.