O país enfrenta uma crise sanitária sem precedentes com mais de 600 mil vidas perdidas pela Covid-19, ao mesmo tempo, parte das atenções do Congresso Nacional está voltada para colocar em pauta projetos que ameaçam os povos indígenas.

Juliana de Paula, advogada do Instituto Socioambiental. Crédito: arquivo pessoal

“Estamos discutindo isso, pois nunca tivemos um Congresso com uma bancada ruralista tão forte como agora. Além disso, eles querem aproveitar esse momento, em que a sociedade está voltada à questão da Covid-19, para aprovar o máximo possível de retrocessos que conseguirem, uma vez que não há garantia de que, nas próximas eleições, eles vão formar uma bancada assim”, avalia Juliana de Paula, advogada do Instituto Socioambiental (ISA).

 

 

Juliana participou da sustentação oral do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que irá definir o futuro da demarcação das terras indígenas. A tese do Marco Temporal diz que os indígenas só podem ter direito sobre terras que já estavam ocupadas por eles no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

No dia 15 de setembro, o julgamento no STF foi suspenso e sem data definida para retorno, após o ministro Alexandre de Moraes pedir “vistas” para analisar melhor o processo. Até o momento, o julgamento terminou em 1×1. Enquanto o relator Edson Fachin votou contra o estabelecimento de um marco temporal para as demarcações indígenas, o ministro Kássio Nunes Marques defendeu a tese. Atualmente, há 300 processos de demarcação de terras indígenas em aberto no país. 

“A tese é uma máquina de destruir história, pois ela diz que a partir de 5 de outubro de 1988 que temos direito à terra. Quer dizer que toda a existência anterior indígena está sendo apagada. Isso inverte a história e coloca que quem tem direito é o colonizador”,

reflete Marcos Sabaru, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)

Além de inconstitucional, especialistas apontam que a tese desconsidera as violências e os conflitos que obrigaram remoções forçadas sofridas por esses grupos até 1988. O marco temporal obriga que os povos provem que estavam em seus territórios na data da promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988.

“Imagine que, daqui a 32 anos, queiram que você, para estar na sua casa, tenha que dar uma prova de onde você estava hoje. As provas são exigíveis quando podem ser feitas e ninguém falou para os indígenas nesta data que eles tinham que guardar essa prova”, explica Juliana de Paula. 

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) defendeu que o fim da tese do marco temporal poderia aumentar a inflação de alimentos e causar desabastecimento, prejudicando o agronegócio no país. Esse argumento é refutado por ambientalistas.

“Os setores mais modernos do agronegócio dizem que não precisamos abrir mais áreas e avançar sobre os territórios indígenas para aumentar a produtividade. Se um setor que já tem mais de 50% da produção do país não consegue aumentar a produtividade com investimento em tecnologia, o problema está no setor e não nas terras indígenas”, defende Juliana de Paula, do ISA.

 

Vera Olinda Sena de Paiva, Secretária Executiva da Comissão Pró-Índio do Acre. Crédito: Arquivo pessoal

Além disso, investir na demarcação e na preservação das terras indígenas também é benéfico para o agronegócio, já que a sustentabilidade é cada vez mais exigida no mercado externo. É o que defende Vera Olinda Sena de Paiva, Secretária Executiva da Comissão Pró-Índio do Acre.
“Em termos de incentivos econômicos, financeiros, o agronegócio bomba. E, quando falamos em mercado externo, ele está exigente. Quanto mais compromisso social e ambiental, melhor para os negócios. Não tem porquê ficar colocando na conta dos povos indígenas qualquer fracasso do agronegócio. Assim como não tem nenhum fracasso”, afirma Vera. 

O fim da demarcação das terras indígenas
As terras indígenas exercem importante papel para a conservação da Amazônia. Segundo dados do Mapbiomas, menos de 1% do desmatamento no Brasil, entre 1985 e 2020, aconteceu nos territórios habitados por indígenas que já foram demarcados ou estão em processo de demarcação. 

“As terras indígenas são provedoras e guardiãs da flora e da fauna. Por outro lado, o que isso custa aos cofres públicos? Nada. Por que inventar a roda? Temos os tratados internacionais, as metas, e as terras indígenas que têm uma relevância grande na preservação”, destaca Sabaru da APIB. 

Marcos Sabaru, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Crédito: Divulgação

Enquanto a ciência atesta a relevância dos territórios dos povos tradicionais para manter a floresta de pé, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que, se validado pelo Congresso, representará um significativo desmonte à demarcação de terras indígenas: o PL 490/2007, do relator Arthur Maia (DEM-BA). Este projeto incorpora a tese do marco temporal como um dos requisitos para o reconhecimento de áreas tradicionalmente ocupadas. 

 


Entre os diversos pontos polêmicos, o PL 490 utiliza critérios integracionistas para restringir ou negar o direito ao território pelo povo indígena, já que facilita a retomada de áreas reservadas a esses povos pela União, quando verificada a “Alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”. 

“Essa política de integrar os indígenas vem antes da Constituição e gerou mortes. Ninguém fala para um determinado setor da sociedade o que ele precisa fazer. Sempre achamos que temos a solução e isso demonstra o nível de opressão que a sociedade ainda tem com os povos indígenas”,

afirma Juliana de Paula, do ISA. 

 

O PL funciona como uma anistia para quem roubou terras públicas, afirmam especialistas do setor.  Se aprovado, esse projeto vai acirrar os conflitos, pois os indígenas estarão muito mais expostos. Os empresários que têm interesses de destruição e exploração das terras vão chegar para o enfrentamento protegidos por uma legislação que é absolutamente indecente”, desabafa Paiva.

Brenda Brito, pesquisadora associada do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Crédito: Ana lu rocha

Brenda Brito, pesquisadora associada do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon),  explica como o projeto pode afetar as áreas indígenas. “Apesar de não tratar sobre territórios indígenas, a ideia dele é alterar uma lei que fala de titulação de quem ocupou terra pública federal. Porém o risco, até mesmo da lei atual, é de acabar tendo uma titulação de terra pública onde existe uma demanda de direitos indígenas”, avalia.

 

 

Para a consultora em meio ambiente e gestão fundiária, Brenda Brito, essas fragilidades são potencializadas pela falta de avanço nas demarcações e também porque os órgãos fundiários não possuem um processo que identifique se essas áreas estão sob esse tipo de ocupação prioritária de territórios indígenas.

“Não precisamos mudar a lei de regularização fundiária para fazer justiça com quem aguarda titulação. Precisamos fortalecer a implementação dessa lei no INCRA. E também fortalecer órgãos, como a FUNAI [Fundação Nacional do Índio], para que eles possam promover o ordenamento territorial e agilizar as demandas prioritárias de territórios indígenas, quilombolas e tradicionais”, destaca Brenda Brito. 

Em meio às discussões fechadas no Planalto, no final de agosto, os povos indígenas fizeram a maior mobilização do gênero, que reuniu mais de cinco mil pessoas de 117 povos, no Congresso Nacional. Os manifestantes participaram do Acampamento Luta pela Vida (ALV), organizado pela APIB, com o objetivo de resistir e enfrentar a agenda que ameaça suas sobrevivências. 

O assessor político da APIB, Marcos Sabaru, pontua que as ações do Governo não são aleatórias. “Não há iniciativa isolada. Existe um movimento acontecendo, um projeto em curso. Desde o dia 22 de abril de 1500, as caravelas continuam vindo. E se repetem as cenas de pandemia, de mortes. Os personagens mudaram, mas a nação é a mesma.”

 

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