Qual Brasil queremos daqui a 50 anos? Como pretendemos nos desenvolver enquanto país? Quais serão a proposta e o caminho de desenvolvimento? Essas são provocações fundamentais que nós, enquanto sociedade, devemos nos debruçar de forma inadiável. E, para realizar tal exercício, a dimensão “água” é um componente fundamental, relacionado diretamente à vida, à saúde, às condições de bem-estar e às capacidades e às atividades da própria economia.
Bem comum, fundamental à vida, a água é elemento essencial para quase todas as nossas dimensões existenciais. Não por acaso, a Política Nacional de Recursos Hídricos elenca como princípio fundamental a garantia dos usos múltiplos da água (abastecimento público, agricultura, indústria, energia, navegação, pesca, turismo, lazer, entre outros), reconhecendo que em situações de escassez o abastecimento humano e a dessedentação de animais têm prioridade em relação aos demais.
Os apontamentos da ciência são claros. A água é um recurso finito e o cuidado com ela é fundamental para garantir suas condições de existência. E, as mudanças climáticas, aceleradas pela ação humana, impactam nos padrões de chuva em toda a Terra. Na prática, equivale a chuvas mais intensas e concentradas, e períodos de secas mais alongados.
Diante desse cenário, qualquer perspectiva de futuro de país e de construção de uma proposta de projeto de desenvolvimento a longo prazo exige considerar os questionamentos: qual é a estratégia de segurança hídrica do Brasil? Como garantir os usos múltiplos da água e o cuidado especial com a dimensão dos direitos humanos de acesso ao saneamento básico, em um cenário de eventos extremos?
Se não sabemos, ainda, onde queremos estar daqui a cinco décadas e sob quais condições, ao menos, é possível ter clareza sobre nossa realidade presente.
Ainda há, segundo os dados do Ministério do Desenvolvimento Regional, 39,9 milhões de brasileiros sem atendimento de água potável e 99,8 milhões sem sequer ter conexão com a rede de esgoto. No Brasil, a cada 100 litros de água captada e tratada, perdemos mais de 39 litros. Isso equivale a 339 litros de água perdidos diariamente a cada ligação. Perdemos um manancial fundamental para nossa segurança hídrica por conta de tubulações antigas ou mal reparadas.
O Atlas do Esgoto, publicado pela Agência Nacional de Águas e de Saneamento Básico, apontou que mais de 110 mil km de nossos rios brasileiros estão poluídos, sem a possibilidade de uso para fins potáveis, uma distância que seria suficiente para dar quase três voltas completas em torno da Terra.
Nossa falsa estratégia de segurança hídrica prioriza a garantia da oferta d’água a qualquer custo e, portanto, relega ao último escalão de preocupação o cuidado com as nossas águas dos territórios e o combate à poluição.
Foram registrados 350 conflitos pelo uso da água no Brasil somente em 2020. No ano que antecedeu, foram 489 disputadas listadas, segundo a Comissão Pastoral da Terra,
As estratégias de reuso da água tampouco ganharam escala e consistência no Brasil. Outros países deveriam servir de inspiração, a exemplo de Israel, onde 85% do esgoto tratado é reutilizado na agricultura – esse setor é o que mais utiliza água no Brasil, responsável por 46,2% da demanda nacional.
Desde 2019, o Brasil conta com um Plano Nacional de Segurança Hídrica, que, em grande medida, pode ser compreendido como um plano de investimentos em grandes obras, padecendo dessa leitura enviesada de que se trata simplesmente de uma questão de infraestrutura. Ainda assim, o próprio Plano aponta que 73,7 milhões de brasileiros irão viver até 2035 em cidades com menor garantia de abastecimento de água.
Fica evidente a ausência de uma estratégia nacional de contingência e adaptação para os momentos de escassez hídrica mais aguda. Este ano de 2021, o país passa por momentos de dificuldade tanto em termos de geração de energia quanto de abastecimento hídrico. E as autoridades tentam colocar a culpa em São Pedro, por conta das chuvas menores do que os padrões históricos registrados. O Brasil poderia se inspirar nas ações e estratégias de convivência com a escassez hídrica que locais como Austrália, Cidade do Cabo e Califórnia vêm adotando, com especial destaque ao pilar central que une essas experiências: a comunicação transparente com a sociedade. Essa deveria ser a aprendizagem número um de nossas autoridades e tomadores de decisão.
Portanto, a realidade brasileira, em termos de segurança hídrica, enseja preocupações muito significativas, por mais contraditório que isso possa parecer ao país com a maior reserva de água doce do mundo. Temos agora o novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei Federal No. 14.026/20), que pode ser enfrentado, ao mesmo tempo, como um desafio e como uma oportunidade para incluir essa dimensão da segurança hídrica, em especial em se tratando do segundo setor que mais utiliza água no país.
O principal risco à segurança hídrica do Brasil é de ordem de percepção. É necessário reconhecer tais condições, incorporar os apontamentos da ciência, introjetar a dimensão de uma nova cultura de cuidado com a água em nosso planejamento e em nossas ações. Um novo acordo social, que coloque essas preocupações no topo das prioridades, é necessário para que esse avanço civilizacional ocorra e façamos com que o Brasil deixe essa dimensão medieval de nossa realidade para os séculos passados.
Este artigo é uma reflexão de Guilherme Checco.
Guilherme Checco é Mestre em Ciência Ambiental (USP) e Coordenador de Pesquisas do Instituto Democracia e Sustentabilidade.
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião de Aupa.
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