A cozinha sertaneja ganha vida na periferia da Vila Medeiros, na Zona Norte de São Paulo. É assim que acontece no conhecido Restaurante Mocotó, que foi fundado como uma casa do Norte, em 1973, pelo pernambucano José de Almeida e atualmente é dirigido pelo filho, Rodrigo Oliveira.

Em um Brasil que produz alimento para mais de 1 bilhão de pessoas, embora cerca de 10 milhões tenha sofrido com a falta de alimento entre 2017 e 2018, o chef de cozinha entende o papel social do restaurante neste cenário desigual.

Neste contexto de pandemia, o Mocotó tem apoiado a comunidade do entorno com entregas de cestas básicas no projeto Quebrada Alimentada. Entre junho e julho, 600 famílias estavam cadastradas para receber alimentos. Mas a ideia, segundo Rodrigo, é ir além e empoderar as pessoas para que elas possam sair da situação de vulnerabilidade.

O restaurante também fez parte da campanha contra a fome “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”, do Coletivo Banquetaço. No projeto, eles serviram almoço para três mil pessoas em uma ocupação próxima a Vila Medeiros. 

Nessa entrevista, Rodrigo Oliveira fala sobre esses projetos sociais, desigualdades e comida de qualidade.

AUPA –  O Brasil vive um paradoxo: somos uma potência agrícola e de exportação de alimentos, mas ainda há muitas pessoas passando fome. Como você enxerga isso?
Rodrigo Oliveira – Isso é um reflexo evidente e cruel da desigualdade que vivemos. Não faz diferença sermos um tremendo produtor, pois você vê a Ásia, que depende da nossa importação, e não tem essa desigualdade.

Isso não muda nada, afinal a diferença social é tão grande, um grupo gigante não tem acesso ao bom alimento. 

Vivemos em uma sociedade monetizada. Ter acesso ao capital é ter acesso ao alimento.

AUPA – Ainda na linha de fome e disponibilidade de comida, qual você acredita ser o papel de chefs prestigiados neste cenário?
Rodrigo Oliveira – O chef de cozinha tem um papel central nesse processo. No final das contas, nossa especialidade é relacionamento. Mais do que um arroz, um feijão, o chef de cozinha está construindo pontes. Entre uma ideia, um desejo e ainda um produtor de um produto muito específico nos sertões do país.

Fazemos a ponte entre cultura e natureza. A cozinha é a expressão desses dois universos. Acredito que só conseguiremos resolver o problema com uma mudança profunda.

O chefe de cozinha deve mostrar o que as pessoas têm direito a comer e o que a indústria e o mercado querem enfiar goela a baixo, com ferramentas de marketing poderosas. Estão destruindo a saúde da população em troca dos centavos que, empilhados, viram milhões de reais.

É importante o chef conseguir mostrar para as pessoas, colocar o gostinho na boca delas do que elas deveriam estar comendo, que os direitos delas estão sendo afetados, para assim, elas cobrarem isso. 

AUPA – Vocês têm distribuído marmitas para a comunidade da Vila Medeiros, além de distribuição de cestas, projeto conhecido como Quebrada Alimentada. Poderia contar um pouco como funciona e se pretendem continuar ou ampliar essas ações em um cenário pós-pandemia?
Rodrigo Oliveira – Adriana Salay, minha esposa, está à frente do Quebrada Alimentada. Ela é uma das idealizadoras e faz parte do Conselho do Mocotó, está sempre presente em tomar decisões importantes. O tema do doutorado dela é a fome. Ela está há 4 anos pesquisando esse tema que é muito dolorido e quando, viu uma crise de fome descortinando, ela ficou tocada.

Iniciamos logo que vimos o que estava por vir. Antes do decreto para o fechamento dos comércios, começamos a cozinhar para a comunidade e distribuir as cestas básicas e orgânicas.

É outro paradoxo, os agricultores que nos alimentam, produzem os melhores alimentos, estão passando fome. Restaurantes e feiras livres estão fechadas, então você vê agricultores com essa dificuldade.

Começamos a comprar deles para entregar nas comunidades. Atendemos com uma infinidade de parceiros cerca de 600 famílias por mês – esse número varia, porque as pessoas buscam os recursos em vários lugares. Atendemos famílias cadastradas e, às vezes, da lista de espera. 

Como imaginamos que é um problema cuja resolução está distante, pretendemos continuar por muito tempo, enquanto tivermos recursos. A ideia também é dar um empoderamento para as famílias saírem da situação de vulnerabilidade.

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AUPA – Você acredita que o fato de o restaurante estar em um local afastado do Centro e dos espaços mais nobres de São Paulo faz com que a proximidade e o impacto na comunidade sejam maiores? Como você vê a responsabilidade social do negócio?
Rodrigo Oliveira – Estamos em um contexto de vulnerabilidade. Nosso bairro é periférico e o nosso redor tem problemas graves, poucos recursos – não temos parque, biblioteca, praça ou centro de lazer qualquer.

Fizemos um estudo há pouco, como se fosse o IDH do Restaurante Mocotó. Queríamos ver a diferença que estamos fazendo nas pessoas que trabalham aqui, pois grande parte delas mora no bairro. A escolaridade do Mocotó é superior à média da cidade. A renda média do Mocotó é quase o dobro do que a renda média da região e maior do que em alguns reais do que em Pinheiros.

Se tivéssemos mais negócios prósperos em comunidades como a nossa, elevaríamos a qualidade de vida da comunidade como um todo.

Precisamos de massa crítica para isso. Se um restaurante de bairro consegue, outros podem prosperar nesse meio. Principalmente, contratando pessoas do entorno. É justamente trazer recurso de fora para cá

AUPA – A segurança alimentar é outro tema que merece ser olhado. Mais do que comer, uma comida de qualidade faz-se necessária. Com o movimento de liberação de mais agrotóxicos, por exemplo, como vocês atuam para conhecer a origem dos produtos que compram? Quais são as diretrizes estabelecidas?
Rodrigo Oliveira – O primeiro ponto é fugir do lugar comum. É necessário encurtar a cadeia, comprar de quem produz. Se o produto de excelência é mais caro, vamos tirar os atravessadores e colocar o recurso na mão de quem está cuidando da terra e dos animais. 

Entender que o fornecedor faz parte da nossa comunidade. Pessoas que têm afinidade, acreditam no que acreditamos. O fornecedor faz parte da nossa comunidade. Isso muda a relação. Nós processamos coisas que foram cuidadas por outras pessoas. 

AUPA – E os pequenos produtores? O Mocotó abrange esses profissionais no processo de escolha de fornecedores?
Rodrigo Oliveira – Sim. Pequeno produtor não necessariamente com o rótulo que entendemos. Lutamos pelo rótulo de excelência.O crivo é o produtor de excelência, pode ser um pequeno produtor de orgânicos de São Paulo, uma indústria no Ceará, um produtor de carne orgânica no Mato Grosso.Nosso fornecedor de uniformes, por exemplo, é alguém do bairro.

ODS 2, que trata de zerar a fome e promover agricultura sustentável. Crédito: Equipe de Arte Aupa.

Ela é excelente. Se ela crescer, vamos ajudar. Então depende muito. Às vezes, um pequeno produtor de cogumelo tem o faturamento 10 vezes maior do que alguém que produz alface. Quais os parâmetros que definimos para o pequeno? Então, falamos da busca por excelência.

AUPA – Como vê a importância da cultura nordestina na nossa identidade gastronômica?
Rodrigo Oliveira – Penso que toda grande cozinha nacional se tornou internacional. Na verdade, a cozinha nacional é um conjunto de cozinhas regionais. Vemos de maneira homogeneizada, mas aproximando um pouco mais, você vê muitas cozinhas. 

Para termos uma grande cozinha brasileira, precisamos decodificar nossas cozinhas regionais. O Mocotó conseguiu um feito: de alguma forma traduzir a cozinha sertaneja para uma linguagem universal. Quando começamos, nem o público paulistano entendia bem a cozinha sertaneja como gastronômica. E, hoje, vemos o Mocotó nas listas de melhores restaurantes no mundo. 

Recebemos o prêmio World Restaurant Awards – 2019 de melhor do mundo na categoria sem reserva. Os finalistas na nossa categoria eram restaurantes da França, Itália e Espanha. Fomos pra lá sem a menor esperança de ganhar e, pra nossa surpresa, ganhamos o prêmio.

Isso é óbvio que não mostra que somos melhores do que qualquer um finalistas, mas é tão subjetivo que é incomparável. É muito difícil criar um parâmetro para comparar. O grande prêmio é comprovar que agora temos um alfabeto, construímos uma linguagem capaz de se comunicar com o mundo tudo. Esse é o grande prêmio. Conseguimos conversar com o mercado.

AUPA – Como foi participação do restaurante na campanha “Gente é pra brilhar e não pra morrer de fome”?
Rodrigo Oliveira – Fizemos almoço em uma ocupação, a cinco minutos do Mocotó, servimos mais de três mil pessoas. É uma ação da sociedade civil, mas também um chamado para o Poder Público, afinal há direitos básicos sendo desrespeitados.

Não devemos achar normal gente morrendo de fome. E hoje há certa normalidade, o que é um absurdo. 

Lembrar que, sim, precisamos da sociedade civil organizada, mas que o Poder Público tem o poder central na questão de garantir os direitos básicos.

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