Há quase seis meses, uma parte de nós está confinada em casa. Enquanto a outra, por obrigação ou necessidade, precisa sair todos os dias para trabalhar.

Aliás, são essas pessoas que, corajosamente, garantem a sobrevivência de quem pode ficar em casa. É a história de mulheres sem direito à quarentena, que trabalham em supermercados, hospitais ou como agente comunitárias – que ficam entre o medo e a responsabilidade de seus ofícios.

É claro que há, ainda, o grupo negacionista: do vírus, da máscara e, desconfiamos, até da vida. E também há muita desinformação e notícias falsas, dificultando ainda mais a prevenção ao vírus. Mas isso é outro assunto. Hoje, falaremos sobre a solidariedade periférica feminina, que não nasceu hoje, mas foi intensificada em razão da pandemia do novo Coronavírus.

São muitos os exemplos pelas periferias de todo o Brasil. Em São Paulo, é possível encontrar alguns deles pelo aplicativo da Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias (RAH), que mapeou mais de 70 locais que estão distribuindo alimentos ou produtos de higiene por toda a cidade.

É importante, no entanto, dizer que esse tipo de solidariedade entre as mulheres não nasceu com a pandemia. Diferente de outros estratos da sociedade, a solidariedade feminina nas margens existe desde sempre. Com complexidades, criatividade e jeitos múltiplos de se fazer e que atravessam os tempos. Aliás, esta solidariedade nunca acaba – dada a omissão do Estado e a constante falta que ainda permeia nossos territórios.

As mulheres periféricas sempre se uniram em teias generosas de proteção e ajuda mútua. Se você tem entre 20 e 30 anos e cresceu na periferia, deve lembrar-se de sua mãe ou tia saindo para trabalhar enquanto você ficava com vizinhas, tias ou avós. Ainda são as mães de muitas outras jovens mulheres que fazem esse papel nos dias atuais.

Se você é um pouquinho mais velha, também deve lembrar, mesmo que vagamente, como as mulheres lutaram (e ainda lutam) para a construção de escolas em ruas que ainda não eram sequer pavimentadas.

No documentário Nós, Carolinas: vozes de mulheres da periferia (2017), a jovem Renata, então com 17 anos, fala que a mãe é sua maior referência, já que ela foi uma das responsáveis por garantir a construção da primeira escola em sua região.

Também podemos citar as aguerridas mulheres da Zona Sul de São Paulo, que lutaram bravamente por mais moradia. Ou, as Mulheres Queixadas, na região Noroeste da cidade, que estiveram à frente de um movimento contra o pó da primeira fábrica de cimento do país, que caía sobre suas roupas brancas no varal (uma luta erguida por donas de casa a partir do serviço doméstico).

Antes de romantizar tais lideranças e agentes de mudança de nossos territórios, precisamos lembrar que é a ancestralidade que nos une no presente. Falar sobre solidariedade nas periferias é falar também sobre as populações africanas e indígenas, assim como do sentimento de coletividade que costurava as relações nos quilombos e nas aldeias.

Sem querer negar a Ciência e entendendo seu papel, principalmente diante da pandemia, é importante reconhecer que o chá de uma mulher mais velha ou as mãos que benzem de uma senhora na periferia também ajudaram a cuidar de muita gente nestes territórios, sendo isso mais um exemplo da generosidade entre as mulheres.

Não queremos jamais idolatrar os desafios e as dificuldades que nos rondam. Pelo contrário: precisamos continuar denunciando os diversos processos racistas e genocidas que nos matam – nós, mulheres negras – antes da hora.

Mas é importante dizer que a vivência em meio a todos esses problemas nos deu algo que ninguém pode tirar: a sevirologia. Como a palavra diz, trata-se da tecnologia de se virar com o pouco que temos, encontrando criatividade na própria sobrevivência e nas nossas iguais.

Esperamos que “os atos de generosidade” das demais classes em relação às periferias não sejam apenas sazonais.

 

Este texto é de responsabilidade das autoras e não reflete, necessariamente, a opinião de Aupa.

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