A Educação é uma das principais preocupações durante o período da pandemia. Afinal, através dela também se revelam múltiplos problemas estruturais da sociedade e o acesso às aulas usando gadgets atendem apenas uma parcela de alunos e professores. Vale dizer que os problemas relacionados ao ensino, sobretudo à qualidade e aos investimentos e cortes feitos, são também anteriores à chegada da Covid-19.
Tanto na articulação quanto no debate público novos atores vêm surgindo, de modo a renovar e trazer novas perspectivas sobre a Educação. E um destes exemplo é a Rede Emancipa, movimento social de Educação popular nacional. Há mais de 12 anos a iniciativa constrói uma rede de cursinhos populares, pautada no trabalho associativo, colaborativo e solidário em diversas regiões do Brasil, com o objetivo de construir uma Educação crítica e transformadora para colocar a juventude periférica dentro das universidades. “Entendemos que existe no Brasil essa desigualdade. Há uma barreira histórica, que é o acesso e a permanência dentro das universidades públicas. Por isso, defendemos uma Educação emancipadora e a construção de um movimento social que lute por essa demanda”, explica Giovanna Marcelino, coordenadora da Rede.
Nesta entrevista, a socióloga e pesquisadora enfatiza que “Existe uma pressão social por uma Educação pública gratuita e de qualidade para todos como um direito”. Giovanna destaca ainda que as Política Públicas devem ter um espaço fundamental para garantir que a Educação não seja uma mercadoria. A seguir, confira o diálogo completo para o especial “Educação na pandemia”.
AUPA – Como é o trabalho da Rede Emancipa?
Giovanna Marcelino – Ele acontece nos territórios junto com as famílias e as comunidades dos bairros. Esse trabalho voluntário faz toda a diferença pra juventude periférica. Ao longo desses anos, a rede conseguiu efetivar a aprovação de muitos alunos que entraram nas universidades e que conseguiram mudar tanto as suas vidas quanto as trajetórias de suas famílias, sendo os primeiros a fazer um curso de nível superior em suas respectivas família.
Dentro desse cenário de pandemia, atuamos também sobre a questão de não ter o volta às aulas, por questões de segurança. Para nós, o ano letivo se recupera, mas as vidas não. Preferimos fazer assistência aos nossos alunos e que o Enem e os vestibulares sejam adiados nesse contexto.
Além disso, estamos também construindo, nesse momento de eleições municipais, uma plataforma, chamada Poder para as Periferias. Trata-se de uma tentativa de síntese desse trabalho, que é colocar as periferias como sujeito político ativo capaz de intervir e decidir sobre a construção das cidades, na tentativa de buscarmos saídas para a crise que vivemos. A juventude negra e periférica é quem mais sente na pele os problemas das nossas cidades ( como Educação, saúde, moradia, transporte) e quem, portanto, pode melhor apontar caminhos e encontrar soluções.
AUPA – Como você vê a importância da Educação diante do atual cenário político-social?
Giovanna Marcelino – Acredito que a Educação cumpre um papel essencial para a sociedade, não só na formação de trabalhadores qualificados para o mercado de trabalho, mas também na formação de sujeitos e cidadãos providos de uma visão crítica sobre o mundo, a história e seus próprios direitos. Trata-se de uma capacidade ativa de entender e de poder atuar no mundo e na realidade.
Mas isso depende muito da forma como o sistema educacional se organiza em cada país. Ou seja, se há investimentos ou não, se valoriza ou não o professor, a maneira como se engaja o aluno no processo de ensino, como é a relação da comunidade escolar, a gestão escolar, o processo de decisão interna dentro da escola.
A forma como está organizado o sistema educacional de cada país é um termômetro extremamente importante para entender a estrutura de desigualdade de cada sociedade.
Neste sentido, a depender como está organizada, a Educação, na verdade, pode ser um instrumento para combater e revelar essa desigualdade e para pensar em um outro futuro. O problema é que, no nosso caso atual, nos deparamos com um contexto atual de crise – e essa crise tem, de uma maneira muito evidente, uma dimensão sanitária, econômica, política, ambiental, mas também é uma crise educacional.
Muitos têm ressaltado, inclusive, a ideia que vivemos um colapso na Educação do Brasil, que não é de hoje, mas, sim, um processo de alguns anos de sucateamento e de precarização, que a pandemia apenas escancarou. Isso em todos os seus níveis educacionais. Do município ao Estado e da creche à universidade. E a pandemia revelou tudo isso de uma maneira muito intensa.
AUPA – O que a pandemia deixou ainda mais evidente na Educação?
Giovanna Marcelino – Em vários lugares do país, por exemplo, vimos o quanto os educadores e os professores da rede pública sofrem com a má remuneração e com a sobrecarga de trabalho. Com a pandemia, o ensino e o trabalho remotos intensificaram esse processo. A sobrecarga de trabalho recai também sobre os estudantes. Muitos abandonaram a escola por não terem um ambiente propício para o estudo dentro de casa, além das condições tecnológicas de acesso a equipamentos, como celulares e computadores, e internet. É preciso ressaltar que muitas famílias do Brasil inteiro sofreram o impacto da perda de renda. Como consequência, esses estudantes estão abandonando o sonho de entrar na universidade para poderem trabalhar e ajudar a família – e contribuírem com a renda familiar. É um cenário muito crítico.
AUPA – Poderia explicar melhor a crise política e educacional, por favor?
Giovanna Marcelino – Somado ao impacto que a pandemia teve, interrompendo o ensino presencial e essa nova realidade de ensino remoto, também enfrentamos um problema de financiamento da Educação, que é muito estrutural e se aprofundou ainda mais com a crise. Justamente com a redução brutal dos recursos dos Estados para Educação pública, que foi a recente batalha do Fundeb. Tudo o que estamos passando é fruto também de um projeto para a Educação que está vinculado a um programa econômico ultraneoliberal. E está também relacionado com essa tentativa de se implementar no Brasil um programa econômico educacional, com a retirada de financiamento de Educação básica e com a falta de estrutura nas escolas e nas universidades.
A questão é séria, por conta do papel que a Educação cumpre na nossa sociedade. Há também a ausência de uma perspectiva educacional, que, de fato, esteja preocupada com os alunos e com a valorização dos professores.
E esse cenário afeta muito a nossa juventude hoje e se depara com a falta de perspectiva de carreira, de emprego, de estudo e de futuro.
AUPA – Quais os impactos é possível projetar na Educação, a longo prazo?
Giovanna Marcelino – É importante ressaltar dois momentos importantes. O primeiro diz respeito ao que estamos vivendo durante a pandemia. A discussão atual está centrada na volta às aulas. Existe uma oposição muito sólida contra a reabertura das escolas, justamente pela argumentação de que não existe, hoje, garantia e nem condições de segurança de estrutura dentro das escolas. Nesse ponto, um fator é a própria exposição de alunos e professores a um risco de saúde muito explícito, como o fator de locomoção. Muitos discentes e docentes usam o transporte público para se locomover até a escola. Existe toda uma cadeia de problemas que justificam a importância do não retorno das aulas presenciais.
Hoje, é mais importante garantir a vida daqueles que fazem parte da comunidade escolar e que o ano letivo possa ser recuperado a partir do momento que isso for possível. Aqui em Campinas (SP), a cidade de onde moro, isso foi uma conquista da comunidade escolar, a partir de uma mobilização de escolas, famílias, professores e estudantes. Assim, a volta às aulas presenciais na rede municipal foi adiada a partir dessa pressão.
O segundo momento diz respeito ao debate em torno da Educação à distância. Vale dizer que este projeto já está sendo testado. A pandemia revelou uma oportunidade de sucateamento e de privatização da Educação com a presença das fundações empresariais, que tentam assumir, cada vez mais, a administração das escolas, além do argumento de que, diante do aumento do desemprego, vale tentar o ensino de empreendedorismo, por exemplo. A escola não é um lugar de negócios. A Educação é um direito e tem uma função social de formação de sujeitos e cidadãos. Há uma luta sobre concepção de Educação.
O que existe é uma pressão para luta pela Educação pública gratuita e de qualidade para todos como um direito. E há uma tendência que está colocado no agora, reforçada pela pandemia, que é o ensino à distância na Educação formal.
O Ensino a Distância (EaD) também é um projeto que precisa ser ponderado. Apesar de tentar projetar essa imagem de modernidade e de inclusão, o EAD é em si um projeto excludente. Apesar de ter se criado um discurso que funciona muito bem – que tem muitos alunos, que a Educação continuou as suas atividades, que está tudo normal -, na verdade, observando ensino on-line com profundidade, é possível notar que existem muitas barreiras já de antemão que colocam em xeque a possibilidade sobre esse projeto.
Novamente, são barreiras quanto ao acesso de tecnologias, como celulares, computadores e internet, e à falta de um ambiente propício dentro de um lar, para se ter um ambiente educacional. Inclusive, muitos lares tem somente um celular para a família toda. Acho que o lar se revelou um debate de importância, pois se tornou quase que uma fábrica – o home office, para quem teve condição de garantir a quarentena nesse momento. Vale lembrar que aumentaram os índices de violência contra a mulher dentro de casa. Como o lar pode ser um ambiente propício para o estudante?
O impacto da pandemia e do isolamento social nos casos de violência contra a mulher
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Há ainda a barreira da falta de interação entre aluno e professor, porque as telas não permitem isso. Se vende a falsa ideia de inclusão dentro do ensino à distância. Então, é uma ilusão achar que trata-se de um projeto bem sucedido, do ponto de vista educacional e também como um projeto de Educação a longo prazo. Pode-se dizer que esse futuro da Educação que está sendo vendido – principalmente pelas fundações empresariais, que têm interesse econômico e financeiro nesse processo de mercantilização da Educação, além do ensino à distância – tem que ser visto com olhares críticos, porque há uma tendência de diminuir a qualidade educacional [para saber mais, veja a pequisa do Instituto DataSenado].
AUPA – Como você enxerga o Brasil no cenário internacional, no que diz respeito ao desenvolvimento de pesquisa e ciência?
Giovanna Marcelino – O Brasil só pode cumprir o papel e explorar as suas qualidades, justamente, valorizando a Educação. É com mais financiamento, investimento e valorização dos professores da Educação pública que o Brasil pode cumprir esse papel. E, infelizmente, na crise que estamos vivendo o movimento tem sido inverso. E isso é muito crítico.
Para fazer uma comparação: da mesma forma que a pandemia viabilizou o trabalho dos profissionais da Saúde e a importância do SUS, isso também vale para a Educação. Porque se não há trabalhadores saudáveis, não existe trabalho.
Se a pandemia viabilizou esse trabalho dos cuidados com a Saúde, ela viabilizou a importância da Educação pública.
É perceptível o quão heroico é o trabalho do professor e do estudante, que também tem a sua jornada para se formar.
Em termos da internacionalização, é ainda mais gritante o cenário da universidade, da graduação e da pós-graduação. Eu sou doutoranda e tenho bolsa e minha pesquisa é financiada pelo CNPQ. E é muito triste ver como muitos colegas estão sentindo na pele o sufoco que é a situação das bolsas e do financiamento de pesquisa no nosso país. Existe um desmonte da Educação pública também nas universidades. Acredito que, inclusive para pensar o Brasil no ambiente da ciência e da Educação, internacionalmente, é muito importante que haja intercâmbios, que os estudantes da pós-graduação sejam garantidos a uma oportunidade de fazer estágio doutoral, por exemplo. Ter a experiência fora do país, conseguir publicar suas pesquisas também de fora do país. fazer os resultados e as pesquisas circularem. Acho que o próprio cenário do desenvolvimento da vacina da Covid-19 é explícito no que diz respeito ao desenvolvimento da ciência que vem de dentro da universidade. Nossas universidades públicas são exemplo também de descobertas científicas.
É muito importante ter investimentos e a situação de desmonte, com corte de bolsa e de condições de infraestrutura para ter pesquisa hoje no país, também é um termômetro de como o Brasil está atrás para conseguir cobrir esse papel de referência internacional. E a vacina é um bom exemplo de como ter ciência, conhecimento científico, autonomia das universidades e investimento da pesquisa no Brasil são elementos cruciais para o desenvolvimento – e diz muito sobre o lugar que o Brasil pode ocupar internacionalmente.
AUPA – Então, como você vê a importância das Políticas Públicas?
Giovanna Marcelino – Acredito que, durante a pandemia, a garantia ao atendimento aos estudantes e suas famílias, antes de mais nada, deveria ser uma orientação de Política Pública. Na verdade deveria ter mais investimentos para garantir que as escolas fossem uma espécie de centro de apoio da realidade para o enfrentamento da situação difícil que estamos passando, com muitas mortes e famílias sendo atingidas. E também com muita desestruturação econômica e social dentro das famílias. Além disso, vale lembrar da discussão sobre renda básica. Isso deveria ter sido uma orientação de Política Pública. Vimos, na prática, o que isso significou para essas famílias, estudantes e professores.
Por que falar em políticas de renda mínima?
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A escola deveria, em primeiro lugar, ter se preocupado em dar apoio e ser um centro de solidariedade ativa para as famílias e os estudantes que estavam precisando de apoio em todos os sentidos nesse momento da pandemia.
No futuro, no pós-pandemia, será fundamental garantir a Educação como um direito para todas e todos. Ainda mais com a busca pela implementação de ensino a distância e de ensino remoto, inclusive, sendo um legado da pandemia, digamos assim. É preciso que as Políticas Públicas garantam que isso não seja uma saída para mais sucateamento, mais precarização da Educação – que é um objetivo justamente dos setores empresariais, que querem lucrar com a Educação -, e que não estão necessariamente preocupados com a qualidade da Educação, do ensino, mas, sim, em transformar em uma Educação mais lucrativa.
AUPA – Gostaria de acrescentar mais algum comentário?
Giovanna Marcelino – É interessante notar que esse quadro também pode ser visto a partir de uma leitura sociológica mais geral, pois, o que assistimos hoje no campo da Educação, reflete um processo social mais geral de financeirização do mundo social, no qual a sociedade passa a ser reconcebida em termos da valorização financeira. Um exemplo disso é o quanto assistimos de maneira muito acelerada a colonização de espaços sociais que até então se constituíram a partir de uma distinção moderna entre esfera pública e privada e que hoje passaram a ser concebidos como lugares de investimento do capital e de mercantilização.
Isso é muito nítido no caso da Educação: cada vez mais, sendo tomada por uma visão de mundo que pensa a Educação como algo rentável, um investimento que pode ter um retorno financeiro, destruindo, assim, a noção de Educação pública como um bem comum e um direito.
Isso corresponde concretamente a um processo econômico de privatização, mas também a um processo social e cognitivo mais geral, pois, para se instituir, a valorização financeira também depende de atores, de uma nova visão de mundo e de dispositivos sociais que a tornem possível. É por isso que nos deparamos, com tanta freqüência, com escolas sendo colonizadas por uma mentalidade e por um léxico em que palavras como “risco”, “impacto” e “investimento” viraram corriqueiras no cotidiano escolar. É por isso também que o educador e o pedagogo não são mais entendidos como especialistas e formuladores de Políticas Públicas educacionais, mas, sim, economistas, gestores e juristas, que justamente atuam em favor dos mecanismos da financeirização e são colocados nesses postos mesmo não sendo realmente especialistas no assunto e nos problemas reais da Educação. Esse processo revela, portanto, de maneira escancarada, uma inversão, na qual quem define o que deve ser Educação não são mais professores, estudantes, associações de pais, comunidade escolar e movimentos sociais, mas, sim, fundações e think thanks. E essa ressignificação das questões públicas sobre as questões privadas e financeiras corroboram para desqualificar o político e as noções de coletividade, em um processo que acaba sendo nocivo para uma concepção de Educação realmente transformadora e crítica.
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