Na última terça-feira (18), foi aberto o novo edital para o Programa de Incubação e Aceleração de Impacto. O lançamento foi feito pela Anprotec, o Sebrae e o ICE (Instituto de Cidadania Empresarial) durante a 28ª Conferência Anprotec, que aconteceu no Centro de Convenções Goiânia, em Goiânia (GO).
O objetivo do programa é mobilizar incubadoras e aceleradoras do país para atrair, selecionar e acompanhar negócios de impacto social e ambiental. A iniciativa pretende auxiliar e capacitar os ambientes de inovação para a criação de planos de ação nessa temática.
As inscrições poderão ser feitas a partir do dia 18 de outubro e se estenderão até o dia 22 de novembro. O procedimento deve ser feito exclusivamente pela internet por meio deste link. Além disso, poderão participar incubadoras e aceleradoras associadas à Anprotec, que operem há pelo menos dois anos. É necessário que tenham acelerado ou incubado no mínimo quatro negócios. O programa chega ao seu quarto ano e já capacitou 56 incubadoras.
Uma dificuldade de quem monta um negócio para combater a corrupção ou incentivar a participação política é convencer o governo a se tornar seu cliente. Ou seja, girar a complexa engrenagem do dinheiro a favor da inovação na política. Ou, talvez, o tempo mostre que não e as soluções disruptivas dentro da política se confirmem como uma tendência global e incontornável. É a segunda teoria que move milhares de pessoas em função de um objetivo: aprofundar a democracia de forma criativa.
“Tradicionalmente, inovação política não dá dinheiro e não tem dinheiro”, analisa Beatriz Pedreira, uma das fundadoras do Instituto Update, referência quando o assunto é disrupção política na América Latina. “Primeiro, porque esse tipo de pauta de inovação política desafia muito o capital. O que dá dinheiro e quem consegue captar recurso é quem já é do status quo. E quem trabalha com dinheiro grande dentro da política, geralmente, não está neste paradigma de inovação”, completa Beatriz.
Em um mapeamento inédito em 20 países da América Latina, foram pesquisadas 637 iniciativas relacionadas aos temas de participação cidadã, governo 2.0, transparência e cultura política. Mais recentemente, em agosto de 2018, outro mapa foi lançado, desta vez apresentando 100 iniciativas de inovação política nas periferias de 5 regiões metropolitanas do país: Belo Horizonte, Brasília, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
Em ambas as pesquisas há órgãos do governo, ONGs, organizações acadêmicas, grupos informais, partidos, organismos multilaterais, mas pouquíssimos negócios — aqueles que pressupõem o lucro, além do impacto social positivo.
Say you want a revolution. We better get on right away
Um destes casos raros é o Colab.re, uma startup que funciona no melhor esquema Power to the People. Um site e um app que se usam da participação popular para incentivar a tomada de decisões do governo em solução de demandas e zeladoria urbana.
Imagina poder avisar a prefeitura pelo celular sobre problemas, como focos de mosquitos, calçadas irregulares e buracos na via? É exatamente isso que o Colab.re faz. A plataforma possibilita que mais de 80 tipos de problemas possam ser notificados e chegar em um painel para os agentes públicos, que ficam mais capazes de priorizar as reivindicações e mobilizar equipes para solucionar os casos.
A solução tem 160 mil usuários ativos espalhados pelo país e tem 10 prefeituras ativas. São elas Aracaju (SE), Maceió (AL), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Teresina (PI), Campinas (SP), Mesquita (RJ), Niterói (RJ), Pelotas (RS) e Santo André (SP).
A meta da empresa é terminar o ano de 2022 com mais de mil prefeituras e com 1 milhão de usuários. Os contratos variam de R$ 3 mil a R$ 40 mil por mês, dependendo do tamanho da cidade e das tecnologias escolhidas. Mas tudo isso começou lá atrás, em 2014, quando Curitiba tornou-se o primeiro governo municipal a usar oficialmente o Colab.re. Na época, a ferramenta foi disponibilizada gratuitamente para prefeituras.
A plataforma também possibilita que os governos façam consultas com a população, medida que foi utilizada em Pelotas. Na cidade gaúcha, a prefeitura usou para que os cidadãos pudessem escolher entre duas possibilidades técnicas para mudar uma das principais avenidas da cidade. Mais de 4 mil pessoas participaram da tomada de decisão.
Hoje, 88% de todas as demandas que chegam via Colab.re são resolvidas. Um número gigantesco perto dos 6% resolvidos das demandas que chegam via telefone, e-mail ou balcão.
A prefeitura de Santos (SP) também utilizou o modelo, em 2016, para que a população decidisse o destino de uma verba de R$ 10 milhões. Os cidadãos escolheram entre 250 projetos, estabelecidos em todas as regiões da cidade, para receber a quantia. A votação alcançou mais de 10 mil votos, 32 vezes mais que o modelo tradicional.
Criado em 2013, com apenas dois anos de vida, o projeto foi escolhido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento como a Inovação Tecnológica de Maior Impacto de 2015, prêmio que disputavam outras 200 startups de 19 países. Isso o colocou na rota de grandes investidores, como o bilionário Pierre Omidyar – nada mais nada menos do que o fundador do eBay e da Omidyar Network, fundo que já destinou 515 milhões de dólares para negócios de impacto. Resultado: em 2017, o Colab.re recebeu 4 milhões de reais em investimento em conjunto com a MDIF (Media Development Investment Fund).
Batizado de Liane, a ferramenta é um software livre que, de acordo com seu desenvolvedor Miguel Peixe está na fase do “protótipo do protótipo do piloto”. Mas sua missão é clara. “O esforço da ferramenta é quebrar a perspectiva de hoje, na qual dinheiro é igual a voto. Ou seja, na entrada da democracia, que é o voto, a gente já tem a primeira grande barreira que impede qualquer tipo de inovação”, comenta Miguel.
Hoje, a ferramenta conta com três módulos. Um que ajuda a campanha a estruturar-se, um para mapear o público e o voluntariado e um terceiro que explora as ferramentas de marketing do Facebook para entender públicos e territórios. “A gente brinca que o Liane é um Cambrigde Analytica do bem. Com ela, apoiamos as candidaturas que têm vieses progressistas e não possuem recurso para acessar uma ferramenta digital que alcance o público que buscam”, conta Beatriz, do Instituto Update.
A ferramenta, como está em fase de teste, foi oferecida, gratuitamente, aos candidatos, mas a ideia é coletar o feedback para entender se há a possibilidade de monetização. “Organizações como a nossa dependem muito de grana externa e, isso, é muito complicado, porque se de repente muda a agenda de investimento, perdemos todo o trabalho. Então, precisamos que uma parte da organização consiga se sustentar. Temos a seguinte intenção: que os partidos vejam nesta iniciativa valor, ou seja, uma ferramenta que possa gerar retorno”, afirma Beatriz.
Hackeando a política por dentro
Um laboratório hacker que estimula o desenvolvimento de ações e ferramentas para melhorar o controle social, a transparência e a fiscalização da atuação legislativa dentro da própria Câmara dos Deputados. Parece demais? Pois, esta é a definição Lab Hacker, que existe desde 2013, em Brasília.
O Lab, como é conhecido entre os íntimos, desenvolve tecnologias para aumentar a interação entre os deputados e a interação do cidadão com os deputados, entre eles o portal E-Democracia, que oferece informações transparentes sobre a atividade parlamentar e permite que qualquer pessoa possa, por exemplo, participar de uma audiência pública sem sair do sofá.
A principal saída para fortalecer o ecossistema de empreendedores de impacto na política, até então, eram os Hackatons, que aconteciam dentro da Câmara dos Deputados. Mas essa estratégia, certamente, mudará.
“Os hackatons tem sido uma fábrica de frustrações. De lá saem projetos lindos, mas que depois de seis meses, um ano, acabam abandonados, porque o autor se envolve com outros projetos. Então, a ideia, neste momento, é tentar fazer com que estes projetos consigam ter uma roupagem de negócio, para que se consiga viver disso”, revela Paulo Henrique Araujo, diretor do Laboratório Hacker.
A saída vista por Araújo pretende ser em parceria com o programa InovAtiva, do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Em colaboração com o SEBRAE e com outros mentores voluntários, o programa oferece capacitação aos empreendedores, sendo, assim, possível criar um negócio saudável. Num segundo momento, também conecta as melhores empresas a fundos de investimento com interesse no tema. Esta parceria com o Lab ganhou o nome de InovAtiva Cívico, que seleciona startups para acelerar e fazer seu pitch para investidores.
“No primeiro momento, queremos fomentar negócios e iniciativas, para que as pessoas consigam viver disso. Futuramente, esses negócios poderão ser fornecedores da Câmara? Sim, mas este não é o objetivo. O objetivo é gerar um ecossistema de empreendedorismo que ajude no controle social, que, de alguma forma, contribua para que tenhamos mais clareza de como funciona o poder público e que haja mais canais de interferência nas principais decisões do país”, conta Paulo Henrique.
As inscrições para fazer parte do Programa de Parceria com o Lab estiveram abertas entre 31 de agosto e 10 de setembro. No dia 12 de setembro, as iniciativas selecionadas foram divulgadas. Das 18 inscritas, seis seguirão em frente: e-Ranking Cidadão, Legisla Brasil, Mobis, Monitora, Brasil!, UnB Sense e Vade Mecum Cidadão.
Os empreendedores selecionados passarão agora por um processo de capacitação on-line e mentoria para qualificarem suas iniciativas. O processo se findará em 10 de dezembro, no Demoday da InovAtiva, no qual as iniciativas serão apresentadas para investidores e para o público.
O tempo é agora
Apesar de ainda tímido, o cenário de negócios de inovação política tem sido a maneira que algumas pessoas encontraram para trazer frescor para um ambiente historicamente empoeirado. “Dizem que uma constituição leva 50 anos para amadurecer, não é? E o timing da política é o timing humano, da tomada de consciência”, filosofa José Mario Brasiliense Carneiro, fundador do Oficina Municipal Escola de Cidadania e Política.
Pode-se dizer que é em um cenário tão turbulento como o atual, que tentam prosperar iniciativas que expandem os limites da interação entre sociedade civil e o governo. E tem um pessoal fazendo de tudo para que o 50º aniversário da nossa constituição que acontecerá em 2038, seja mais animado do que sua recente festa de 30 anos.
O portal Voz das Comunidades é um veículo fundado em 2005, feito na favela e para a favela. Ele nasceu no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, pelos anseios de um menino de 11 anos que enxergou grande potencial no jornal Vip, o folhetim de sua escola. Rene Silva dos Santos hoje tem 24 anos, é o editor-chefe do Voz das Comunidades.
“Comecei o Voz devido a um trabalho da escola onde eu estudava [Escola Municipal Alcides de Gasperi]. O jornal feito pelo grêmio estudantil mostrava a realidade da escola e ali me inspirei, pois dava resultado. Mostrava o que acontecia na escola e era uma ação muito legal. Foi pensando neste enfoque que me inspirei e criei o Voz”, comenta Rene. Detalhe: naquela época, ele estava na 5ª série do Ensino Fundamental.
Os anos se passaram e, em 2010, veio o boom do Voz da Comunidade. (ainda no singular; o projeto de expansão, com correspondentes e parceiros, começou em 2017). Foi o ano da ocupação das Forças Armadas no Morro do Alemão e sua enorme repercussão. Do Complexo do Alemão, o projeto se expandiu para outras comunidades e hoje atua no plural: é o Voz das Comunidades. A equipe do Voz conta com quatro jornalistas fixas na redação, mas há um total de 18 colaboradores na equipe de jornalismo e outras 14 pessoas que são voluntárias com foto ou texto.
Rene é bastante requisitado para ministrar palestras e ensinar um pouco sobre a importância do Voz a diferentes públicos. Além de rodar o Brasil, ele também tem conquistado o mundo: em 2018, figura na lista dos 100 negros mais influentes do mundo com menos de 40 anos – eleição feita pelo Most Influential People of African Descendent, em Nova York. O brasileiro teve indicação da UNESCO Brasil para o pleito.
O editor foi criado pela mãe e pelos avós, que são seus vizinhos. Além dele, há mais dois irmãos: a adolescente Raquel e Renato, que é fotógrafo do Voz. O patriarca da família faleceu quando Rene tinha 5 anos. Como passa muito tempo viajando e transitando entre as comunidades, Silva costuma aproveitar as horas vagas com sua família ou passeando com os amigos no shopping ou no centro do Rio. Em entrevista exclusiva à Aupa, René conta da importância que tomou o seu projeto e do impacto que a Comunicação pode gerar.
mostramos um outro lado da favela, um outro lado da sociedade que as pessoas não estão acostumadas a ver.
AUPA | Como você vê hoje a relevância de um projeto como o Voz das Comunidades?
RENESILVA| Exatamente. Hoje, o Voz expandiu e está em outras favelas no Rio de Janeiro, não está só no Complexo do Alemão. Estamos atuando com correspondentes e parceiros em outras favelas. Esse processo de expansão começou em 2017. Depois que surgiu o Voz das Comunidades, as pessoas [da comunidade] o veem muito como um canal de reclamação, de exposição, de tudo. Seja para tratar dos problemas sociais, seja da vida ou dos projetos culturais, em geral. As pessoas o veem muito como a referência. Hoje em dia, percebemos muito isso, porque, quando está para acontecer a um evento na comunidade, por exemplo, as pessoas já entram em contato com a gente, geralmente, para divulgar algum trabalho para a comunidade ou quando tem algum problema social. Então, são várias referências que as pessoas já entram em contato imediatamente conosco, pois sabem que o Voz faz este tipo de reportagem, que damos espaço a estes temas. Elas agora sabem o que procurar: não vão entrar em contato com a Rede Globo ou a Record ou qualquer outra emissora para falar sobre alguma coisa da comunidade. Elas sempre entram em contato com o Voz, porque sabem que a gente também consegue funcionar, buscar a solução ali junto à prefeitura, ao governo, aos órgãos públicos responsáveis, havendo canal direto com a comunidade.
AUPA | E há toda uma valoração também do morador de se ver dentro do canal da comunidade…
RENESILVA | Sim, sem dúvida. As pessoas se veem dentro de um canal, que vem de dentro da comunidade, e já pensam: “Nossa, estou aparecendo no jornal, na comunidade que eu moro”. Pode ser em vídeo, foto ou texto, as pessoas têm uma representatividade muito importante. Afinal, se veem ali dentro. Não é como um jornal da grande mídia, onde as pessoas não se veem. Por exemplo, não vai sair a capa de um jornal, da grande mídia, falando sobre algo muito legal da favela – às vezes, acontece, mas é mais difícil.
Afinal, [as pessoas das comunidades] se veem ali dentro. Não é como um jornal da grande mídia, onde as pessoas não se veem.
AUPA|Você foi recentemente eleito um dos negros mais influentes do mundo com menos de 40 anos, segundo o Mipad (Most Influential People of African Descendent), sendo indicado pela Unesco Brasil. Como é para você receber a honraria?
RENE SILVA | Vejo como uma conquista importante na minha vida e para os meus projetos futuros. O que acontece: por conta das nossas iniciativas com o Voz, a gente acaba não tendo muito tempo de absorver mais os nossos próprios projetos, entendê-los mais. Só os colocamos em prática. Quase não temos tempo de fazer outras coisas. Então, quando acontece este tipo de reconhecimento, vemos o quão importante, de fato, é o projeto. A gente fica no nosso cotidiano, fazendo, fazendo, fazendo… e quando vemos… há um reconhecimento de fora, assim. Uma coisa interessante, pois estão, de fato, acreditando no nosso projeto. Percebemos, assim, que estamos no caminho certo e fazendo algo que é importante.
Eu não tenho muita noção do tamanho ou do alcance que o Voz tem disso tudo. Mas quase todos os dias algum professor nos escreve contando que usou o nosso material em sala de aula ou que apresentou o projeto. Editoras também nos procuram para colocarem a nossa história em materiais didáticos. Eu acho isso importantíssimo. Muitas editoras, de vários lugares do Brasil, nos procuram para autorizar uso de o texto para elaborarem um exercício e, assim, mostrarem a importância do Voz das Comunidades. Acho o maior barato, interessante mesmo. E foi uma surpresa, pois nem eu sabia que ia sair.
AUPA |Vocês acabam fazendo um jornalismo que vai além das fronteiras da comunidade, como uma tentativa de estourar bolhas. A gente vive em um país racista e preconceituoso. Você recentemente foi vítima de ofensas racistas em um voo. Como fazer comunicação para ir além das bolhas e ajudar a quebrar essa lógica de violência e preconceito?
RENE SILVA | É um papel importantíssimo, porque mostramos outro lado da favela, outro lado da sociedade que as pessoas não estão acostumadas a ver. Só quem vive, mesmo, na comunidade sabe como é a realidade. Quando você está fora da comunidade, você não tem, de fato, noção. Então, é importante fazer e manter o jornal funcionando, para que mais pessoas sejam inspiradas e usem essas iniciativas para criar os seus veículos de comunicação. Quando eu faço palestras em escolas, em vários estados, eu sempre falo para os alunos: “Crie seu jornal, infelizmente não tenho como estar em todos os estados, não tenho como estar em todos os lugares, criem e mandem uma mensagem, pois estarei apoiando, estarei auxiliando de alguma forma”.
As pessoas não se assustam quando veem um empreendedor negro tendo um salão de beleza ou tendo uma cafeteria ou tendo qualquer outro negócio na favela.
AUPA | E essa questão do racismo, com as denúncias: vocês recebem bastante como sugestão de pauta?
RENE SILVA | Sim. Colocamos muitos artigos de opinião e temos, também, colunistas que escrevem no Voz. Abordamos bastante o tema, tanto da maneira geral quanto da especifica também. Acho também que o Voz, pelo fato de estar sempre retratando e fazendo reportagens com e da favela, já se posiciona. Isso já mostra uma diferença, pois há uma representatividade muito grande. As pessoas não se assustam quando veem um empreendedor negro tendo um salão de beleza ou tendo uma cafeteria ou tendo qualquer outro negócio na favela. As pessoas de fora, talvez, sim, mas as de dentro, não, afinal todo mundo já está sabendo e todo mundo já conhece. As pessoas são retratadas sendo elas mesmas.
AUPA | E como vocês rentabilizam o Voz das Comunidades? Vocês têm parceiros?
RENE SILVA | Não, rentabilizamos por intermédio de publicidades. Como somos um veículo de comunicação, temos alguns produtos para veicular. O nosso jornal impresso é um produto que veicula publicidade, por exemplo. O jornal é distribuído gratuitamente nas comunidades e nele há anúncios publicitários de empresas, do comércio local. E é importante para manter o jornal funcionando.
intervenção completou seis meses agora em agosto. Estamos sempre acompanhando tudo, publicando quando há abuso de poder ou algo do tipo, para expor a situação.
AUPA | É correto afirmar, então, que o Voz das Comunidades é um negócio de impacto social? Você o vê assim?
RENE SILVA | Sim, o vejo assim, porque o impacto social é muito grande na vida das pessoas. Promovemos encontros e debates. Agora, com as eleições, estamos promovendo debates com os candidatos a deputado estadual e federal de dentro da favela – são candidatos que moram dentro das favelas. Isso é importante para as pessoas decidirem seus votos. Então, acaba tendo um impacto muito grande dentro das favelas, pois as pessoas respeitam muito o nosso trabalho e o vê como uma grande referência.
AUPA | Como você vê essa questão da intervenção militar, que está acontecendo no Rio de Janeiro, em relação ao trabalho do Voz das Comunidades? Como que vocês estão trabalhando nesta situação?
RENE SILVA | A intervenção ainda não aconteceu especificamente no Complexo do Alemão. Mas, em outras favelas, sim. Os parceiros, que são nossos correspondentes, nos mandam informações o tempo todo. Então, estamos acompanhando muita coisa, publicando os dados e as informações. A intervenção completou seis meses agora, em agosto. Estamos sempre acompanhando tudo, publicando quando há abuso de poder ou algo do tipo, para expor a situação.
Se não fosse o Thiago Vinicius, hoje na Agência Solano Trindade, talvez eu nunca tivesse sido apresentado ao que o campo chama de empreendedorismo social. Thiago e eu éramos alunos do Projeto Arrastão, no Campo Limpo, periferia da zona sul de São Paulo, mas navegávamos águas diferentes em nossas trajetórias. Eu, graças à Fundação Abrinq, estava cursando faculdade de jornalismo na Universidade Santo Amaro, sonho de uma família inteira. Antes de existirem as essenciais políticas públicas de acesso ao ensino superior, era apenas assim que, quem mora onde eu moro, acessava o ensino superior. Ou pedindo bolsa diretamente à faculdade, ou empréstimo em algum banco, pelo que lembro.
Thiago, um dia, me ligou em casa e eu sem trabalho, concentrado nos estudos para não perder a bolsa logo no primeiro ano de faculdade. Durante o papo ao telefone, ele disse que estava empreendendo, queria me mostrar o seu projeto. Pediu-me para encontrá-lo dali a dois dias, eu fui. Acho que ele tinha 16 anos, na época.
Eu fui, e o Thiago passou uma tarde inteira me contando e mostrando que os resíduos que eram jogados fora – eu nunca o vi falando sobre lixo – dentro do Rio Pirajussara, ao lado do Projeto Arrastão, não geravam apenas as enchentes que a gente conhecia bem. Que era algo muito maior. Geravam problemas não só à autoestima dos moradores, à saúde deles, faziam com que gastassem mais, pois perdiam seus móveis, etc. Ele me apresentou, naquele dia, o Reativar & Empreender, nome do seu projeto, e contou que estava indo a vários lugares falar de empreendedorismo social.
E não foi só isso. Por conta de fazer o que já estava fazendo, o Thiago continuou a contar, pelo que me lembro, que estava articulando atividades com o Movimento Hip Hop. Que estava, ainda, em diálogo com as escolas públicas da região. E andava até participando de uma outra reunião com os postos de saúde, conversando sobre cultura, educação, sexualidade. Eu, ouvindo tudo aquilo, fui me perdendo na agenda e nos assuntos dele. O Thiago me disse que quem fazia o que ele fazia era chamado empreendedor social. Alguém que se dedicava a desenvolver soluções para problemas sociais complexos, mas colocando essa dedicação como jeito de existir no mundo.
Pronto: chegamos ao ponto que queria. Foi o Thiago que me apresentou este mundo, que me deu os livros e os links para eu saber mais, conhecer as organizações que trabalhavam com o tema no Brasil. Era tudo mato naquele tempo. Para fazer o que ele fazia além de apoio à sua ideia, o Thiago tinha também suporte econômico como pessoa. Ou seja, trocando em palavras de pingado numa manhã de segunda: o apoiavam financeiramente para que ele pudesse se dedicar integralmente a fazer o que fazia. O dinheiro não era apenas para cobrir os custos do Reativar & Empreender, era também para que o Thiago dedicasse seu tempo, talento e energia nas suas ideias de uma periferia diferente, realizada em sua potência. Essa foi a primeira vez que entendi que quando se nasce onde a gente nasce, nas periferias, a pessoa não empreende o seu projeto, ela empreende o território.
Veja, me explico: todas as pessoas que conheço, hoje em dia, que estão articulando coletivos, empreendimentos sociais, negócios de impacto, e todos os outros termos que você queira imaginar e usar, não fazem isso apenas ao redor de uma ideia, de uma iniciativa. É diferente, ao menos para mim e nas periferias. Essas pessoas dedicam, sim, um tempo considerável em fazer suas ideias crescerem, ganharem força e vida, se espalharem. Mas elas estão envolvidas até o coração com uma dezena de articulações que, às vezes, são bem distantes do seu tema motivador, mas dizem respeito integralmente à sua rua, praça, bairro, à sua classe, gênero, raça. Viu, é diferente.
Além de puxar aquele projeto de educação/comunicação, oferecer oficinas para 30 jovens todos os “sabadões”, das 9h às 17h, as pessoas envolvidas em projetos como esses varam noites fazendo reunião sobre plano diretor, violação de direitos, sobre segurança alimentar dentro do seu bairro. Assim, se dá início à organização da comunidade e se começa a fazer pressão política para que essa ou aquela secretaria cumpra o que prometeu quando Cabral desembarcou por aqui.
Eu posso contar nos dedos quais pessoas apenas empreendem o seu projeto, a sua ideia, ou seja, a sua iniciativa. Isto dentro das redes em que estou inserido, hoje em dia. Está para além disso, elas empreendem uma visão de mundo, uma visão de futuro, uma visão de território. O próprio território, veja, é diferente!
E, então, chegamos à motivação de eu ter ido buscar este papo com o Thiago uns 13 ou 14 anos atrás. Não fui só eu que cresci de lá para cá. Uma pessoa, empreendendo a partir das periferias, já parte estruturalmente atrás do restante da cidade com relação a acesso a recursos, redes, talvez ferramentas. Estruturalmente também nunca empreende apenas a si, ao seu projeto, mas também a todo um território. Será que não seria hora de pensar, para além dos editais que financiam projetos, suporte financeiro a pessoas, como os institutos e fundações faziam lá atrás, na época que o Thiago me apresentou tudo isso como possibilidade de vida?
Veja, se um apoiador fosse suporte financeiro para um Ronaldo Matos, para uma Thais Siqueira, para um Bruninho Souza, uma Franciele Meirelles, e tantos outros fazedores por aí, você faz ideia das mudanças estruturais que elas moveriam em seus territórios em um, dois anos? Das redes que elas colocariam em movimento, que reativariam por se sentirem no mínimo, mais seguras economicamente no dia 10 de todo mês? Isso é o que chamamos de segurança econômica para combater desigualdades de acesso.
Ter que empreender no seu território a sua ideia, o seu sonho, na sua comunidade, e ainda precisar fazer mais sete “freelas” para fechar a conta dos boletos no fim do mês, mas só tendo dinheiro apenas para ajuda de susto (nem é de custo) do seu coletivo é também da desigualdade estrutural. Ou seja, uma desigualdade de acesso a oportunidades. Talvez, seja legal olhar para isso, não?
Recuperando essa prática de apoio, quem sabe a renovação política que tanto sonhamos não consiga emergir de vez? Até porque passa ser interessante pegar aquele “freela” no dia seguinte e acreditar que conseguirá fechar as contas de setembro, do que ter que ir àquela imersão sobre políticas públicas no sábado próximo? Quem sabe, não é? E, quem sabe se essa pessoa tivesse suporte para realizar a potência que é quem sabe, não é mesmo?
Não acredite em nada que eu disse. Mas não desacredite!
“Afagar a terra/Conhecer os desejos da terra”. Os versos de Chico Buarque e Milton Nascimento para a canção O cio da terra (1979) podem ser lidos como uma poética contemplativa da vida agrária no Brasil. E cabem também quando o assunto é o queijo da região da Serra da Canastra – dentre outros derivados de leite cru.
Dessa maneira, o cio da terra, que ocorre em cada estação, envolvendo desde a alimentação do gado, que proverá o leite, até a atividade microbiana do queijo em fermentação (constante), revela-nos um alimento vivo. Este estado favorável à produção a partir da terra mostra uma história brasileira secular por intermédio do alimento – uma cultura praticada oralmente e passada de geração em geração. E qual é o impacto social que um saber tradicional, como o do queijo Canastra, em sua região?
Queijo Dinho sobre banca de madeira entalhada pelo nosso bisavô Quinca. Crédito: Valéria de Oliveira
O impacto da tradição
Trabalhar com o queijo artesanal é lidar com passado, presente e futuro. “O viés de transformação social é importantíssimo para a própria perpetuação da cultura no futuro. Trata-se, antes de tudo, de uma forma de vida envolta no trabalho diário”, reflete Igor Messias da Silva. Ele é engenheiro ambiental e um dos responsáveis pelo Queijo Dinho, especializado no queijo tipo Canastra.
O queijo Canastra traz à mistura a mineiridade com a fermentação, que vem do bioma local, além de ser importante fonte de renda de famílias, principalmente para os pequenos produtores. “O potencial de transformação social do queijo Canastra é algo fabuloso, capaz de fazer uma verdadeira revolução em nossa região. A sua aceitação popular e sua fama são enormes”, explica o engenheiro.
O produtor rural Igor Messias da Silva e o Queijo Dinho. Crédito: Lucas de Oliveira
Os pontos citados pelo engenheiro garantem mercado, segundo sua explicação. “Além disso, a produção deste queijo é exclusivamente familiar. Portanto, não existe concentração. Há, na verdade, distribuição de renda nas pequenas propriedades espalhadas no entorno da Serra [da Canastra]”, comenta. Para se ter uma ideia, segundo reportagem da brasilagro, o queijo representa hoje 55% da economia de São Roque, o que engloba também o ecoturismo relacionado à ele.
João Carlos Leite é produtor rural e presidente da Associação dos Produtores de Queijo Canastra (APROCAN) e é prova da importância da hereditariedade na produção artesanal de queijos. Afinal, seu filho mais velho – arquiteto formado pelo Politécnico de Turim (Itália) – é quem toma conta da queijaria da família hoje. “O caçula estuda Medicina, porém já é um apaixonado pelo negócio do queijo Canastra”, conta o pai, que é a quarta geração da família Leite na região.
Entre as conquistas da APROCAN está o registro, desde 2008, do queijo Canastra como patrimônio cultural imaterial brasileiro, título concedido pelo Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – o que agrega valor cultural ao produto.
Hoje, o queijo Canastra é feito por cerca de 800 pequenos produtores espalhados pela região da Serra. Mas este número já foi maior: segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (EMATER), outrora constavam cerca de 2.000 produtores. E a situação legal do queijo ajuda a explicar esta evasão, que começou entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000.
Da perspectiva ambiental, o bioma da região da serra da Canastra, hoje, se encontra em processo de extinção. Na mesma região, no lado sul da Serra, o problema é a mineração de quartzito. E é justamente o bioma que faz com que o queijo artesanal tenha um processo e sabor tão únicos. “As condições de microbiologia e o ecossistema nos permitem produzir um queijo diferenciado com sabor único no mundo”, reforça o presidente da APROCAN.
Fazenda Água Limpa onde é produzido o Queijo Dinho, na Serra da Canastra. Crédito: Igor Messias
As Cidades da Serra
Com peculiaridades trazidas pelas características únicas do bioma local (que se encontra em processo de extinção), a técnica de fermentação e produção do queijo só tem sentido e autenticidade se feito naquela região. A Serra da Canastra reúne 11 cidades: São Roque de Minas, Araxá, Bambuí, Campos Altos, Ibiá, Medeiros, Perdizes, Sacramento, Tapira, Tapiraí e São João Batista do Glória.
Entraves à produção
“O queijo Canastra não tinha um reconhecimento oficial, ou seja, era um produto ‘ilegal’, à margem da lei e, com a evolução dos negócios, ele ficou fora do ‘mercado legal’. O queijo, assim, foi ‘prostituído’, ficou sem valor agregado”, explica Leite. E foi a perda de valor que fez com que os pequenos produtores abandonassem a atividade.
“Quem teve condição de mudar de ramo econômico e começar outra cultura o fez. Dos 800 produtores que sobraram, a maioria é de fazendas pequenas, isoladas e que, em alguns casos, não tem energia elétrica”, comenta o presidente da APROCAN. A evasão promoveu a bancarrota geral dos produtores deixando a atividade, a produção de queijo, fazendo-os vender as fazendas.
Por produto legal entende-se aquele que tem a certificação vinda de órgãos públicos, sobretudo federais. Uma peleja que trata, também, de higiene e boas práticas de produção. Em 2014, segundo pesquisa da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP em Piracicaba, 67% das propriedades avaliadas na região carecia de informações a respeito das práticas de fabricação. 17%, apenas, faziam controle de doenças.
Saiba mais sobre as pesquisas sanitárias envolvendo o queijo Canastra neste link.
E por isso a importância da , sobre a inspeção industrial de produtos agroindustriais artesanais e o uso do selo ARTE. Eles podem auxiliar na circulação e consequente popularização e conhecimento geral do queijo Canastra, que é produzido desde a chegada dos colonizadores ao Brasil. Até então, a comercialização interestadual de queijo cru no Brasil era proibida.
Saiba mais sobre as leis envolvendo o queijo Canastra neste link.
A este cenário soma-se os custos altos para a produção de leite e produto com valor agregado baixo. “Assim, o produtor não consegue nem alimentar sua família. Os filhos, quando atingem a idade para trabalhar, acabam migrando para os grandes centros e os pais abandonarem a atividade. Problemas oficiais que este mercado informal trouxe”, aponta o presidente. Deste contexto surgiu a APROCAN há cerca de 20 anos, a partir de um trabalho de melhoria na qualidade do leite e com os produtores mobilizados, coletivamente, para legalizar o queijo, bem como agregar valor ao produto.
Fazenda Água Limpa onde é produzido o Queijo Dinho. Crédito: Igor Messias
Tentativas de viabilizar o negócio
No geral, os cerca de 56 pequenos produtores associados à APROCAN vendem seu queijo cinco vezes mais caro do que aqueles produtores que estão fora da associação. “A cada dia temos novos associados. Imagine um produtor que tira 100 litros de leite por dia, produz 10 queijos e vende cada um pelo valor de R$10,00. No final do mês, ele fatura R$3.000,00. Já um produtor que tira a mesma quantidade de leite e produz também 10 queijos por dia, mas que vende cada peça por R$50,00, fatura R$15.000 mensais. Quintuplica a renda, melhora a qualidade de vida do produtor e estimula os filhos a fazer a sucessão familiar, impulsiona o comércio local e cria um círculo saudável nesta cadeia” exemplifica Leite.
Como se trata de uma produção artesanal – e isso é um fator limitante – é impossível investir em alta escala. “Como a oferta é pequena e a demanda é alta, o preço sobe. E isso rentabiliza e viabiliza o trabalho do pequeno produtor”, explica Leite.
“O viés de transformação social é importantíssimo para a própria perpetuação da cultura no futuro. Trata-se, antes de tudo, de uma forma de vida envolta no trabalho diário”, Igor Messias, produtor local de queijo Canastra.
A rentabilidade e a agregação de valor ao queijo Canastra estão relacionadas às peculiaridades naturais para o processo de fermentação da região. E dá trabalho: só para triar, ou seja, formar a flora de bactérias necessárias para a fermentação do queijo são necessários cerca de dois meses – todo queijo produzido neste tempo é descartado.
Quanto à maneira de tornar rentável a cultura do queijo Canastra, Igor Silva é enfático: “Nós basicamente contamos histórias – as nossas histórias!”. As famílias da região costumam revisitar seus passados por intermédio dos registros orais dos membros mais velhos. A APROCAN também auxiliou nesta valorização com a história oral da Canastra. “A associação buscou parceria com o Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], que trouxe capacitação. Hoje, além da venda de queijos, muitos produtores oferecem visitas guiadas e até dias inteiros de vivência na propriedade, onde o turista faz imersão na nossa cultura”, detalha o engenheiro ambiental, que oferece tal atividade em sua fazenda.
Quem entra na fazenda Água Limpa, avista o gado na parte baixa do morro e não se espante se vacas e bois estiverem pastando e comendo manga sob a mangueira de mais de 50 anos da propriedade. “Na época do fruto, as vacas dão leite de manga”, brinca Igor. Logo na entrada da fazenda, o forte cheiro de leite fresco e o manuseio preciso e metódico de quem detalha as regras sanitárias e entende a individualidade de cada queijo entregam que ali está a queijaria da família. O Queijo Dinho produz cerca de 20 queijos por dia. Cada queijo necessita de cuidados diários na sua maturação, que leva mais de 22 dias até que possa ser vendido.
Hoje, o queijo Canastra é feito por cerca de 800 pequenos produtores espalhados pela região da Serra.
A equipe da queijaria da família de Igor conta com: Allan (o irmão) na produção e comercialização, ajudado por um casal de colaboradores que mora e trabalha na fazenda; Lucas (o primo) na produção de imagens e vídeos para divulgação; Dona Ângela (mãe de Igor e Allan) e Seu Hildo (pai de Igor e Allan), que disponibilizam a fazenda. Um verdadeiro trabalho em equipe. O queijo é vendido diretamente na fazenda e em lojas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e no Distrito Federal. “Nossa limitação é basicamente logística. As regiões Norte e Nordeste, por exemplo, ainda são inexploradas por nós devido à dificuldade de envio do produto”, comenta Igor.
Heranças
A questão da hereditariedade também é forte na família que toca o Queijo Dinho. Igor conta que, até onde eles conseguiram mapear, houve quatro gerações antes da dele – e garante que o queijo Canastra sempre esteve presente. “Hoje temos uma pequena propriedade, porém nosso avô nem isso chegou a ter: ele trabalhava arrendando pequenas fazendas em São Roque de Minas. Quando, finalmente, ele conseguiu comprar seu pedaço de terra, faleceu antes de ocupá-lo. Coube, então, à nossa avó, Lica, assumir a criação de seis filhos”, revela Igor.
O filho mais velho de Dona Lica tinha apenas 14 anos na época. A família desistiu da fazenda recém-adquirida pelo patriarca e mudou-se para a fazenda Água Limpa, em Piumhi, em 1972. Hoje, quem comanda a produção de queijo Canastra na fazenda é Allan, irmão de Igor. O nome Queijo Dinho é uma homenagem ao pai de Igor e Allan, Seu Hildo. “Há poucos anos decidimos parar de entregar nosso produto quase de graça aos atravessadores. Somos nós mesmos quem buscamos os clientes lá fora”, revela.
Igor se define como “Um sujeito que sai da roça, mas a roça não sai dele”. Ele é o responsável pela divulgação do queijo Dinho, emite notas fiscais, controla exames laboratoriais sanitários de rebanho, água e queijo, além de fazer parte da APROCAN e militar pela “Libertação do queijo artesanal de leite cru por intermédio da SerTãoBras, uma organização não governamental”, segundo o próprio engenheiro ambiental.
Num país marcado pela pobreza e que ainda sofre com a fome em determinadas regiões, a circulação de um produto feito pela interação promovida pelo bioma local é o próprio cio da terra.
Sandra Portella é mais que uma artesã. É uma marca. Procure lá no Facebook: “Sandra Portella Arte em Crochê”, com logo e tudo. Vende também pelo WhatsApp e pelo Instagram. Além disso, desde julho, comercializa através de sua vitrine virtual na mais nova plataforma de comércio justo do artesanato brasileiro, a Entusiasta. Não, não se trata de mais uma loja on-line de produtos artesanais. A venda de artigos é só parte de um projeto muito maior, ambicioso até: transformar milhares de artesãos brasileiros em empreendedores sociais. Sandra Portella já é uma delas.
Nasce uma artesã
Moradora de Santa Cruz, bairro da zona oeste carioca, Sandra precisou trabalhar duas décadas como auxiliar de escritório para então ficar desempregada. Só então enxergou uma saída em um velho talento adormecido desde a infância, quando aprendera a manejar com a mãe as agulhas de crochê.
Sua história como artesã começa tarde, só depois dos 40 anos de idade, e devagar. Suas primeiras vendas foram para os professores da escola onde o marido trabalhava como inspetor, em 2006. De lá para cá, foram dez anos produzindo bolsas, roupas e acessórios de crochê para grandes marcas cariocas, como Farm e Cantão. Mas sempre escondida por trás de alguma grife ou designer. Certo dia, ao ver uma bolsa tecida por ela, a ficha caiu: “Engraçado, não tem meu nome em lugar nenhum…”.
Sandra Portela é uma das artesãs ligadas à rede Asta e incluidas na plataforma Entusiasta. Crédito: Agência Criativa.
Campo de oportunidade
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), existem cerca de 10 milhões de artesãs e artesãos no Brasil. A vasta maioria produz obras em modo anônimo. Ou, na melhor das hipóteses, revendidas nas grandes capitais a um custo muito acima do valor de produção.
Para eles é que foi criada, em 2005, a Rede Asta, negócio social sediado no Rio de Janeiro que estimula grupos artesanais em todo o Brasil a transformar resíduos industriais em objetos de moda e decoração. Hoje, mais de mil profissionais fazem parte da rede. E, sim, tudo que eles produzem chega ao mercado com o devido crédito, vendido pela Rede Asta através de loja física, loja virtual ou negociação com o cliente final.
Neste mesmo meio, tem-se outra ficha que caiu, desta vez é a de Alice Freitas, cofundadora e diretora executiva da Rede Asta: “Em 2015, fizemos uma avaliação de impacto e percebemos que éramos nós que operávamos o varejo. Ou seja, as artesãs continuavam dependentes da gente. Nosso modelo simplesmente não alavancava sua carreira como empreendedoras.”
Daí a ideia: por que não reunir toda a experiência acumulada em dez anos e repassar o conhecimento às artesãs para que elas mesmas encontrassem o caminho do mercado? Em 2017, surge a Entusiasta. E Sandra Portella entra na história.
Lançamento da plataforma Entusiasta, da rede Asta. Crédito: Divulgação.
Saindo do anonimato
Sandra já conhecia a Rede Asta havia alguns anos, mas não fazia parte da rede. Até então, a empresa só aceitava grupos produtivos, como cooperativas e associações. A plataforma Entusiasta foi criada justamente para cobrir essa lacuna e permitir que também artesãs e artesãos individuais pudessem ter acesso ao mercado.
Como? Em primeiro lugar, por meio da chamada Escola de Negócios, na qual Sandra se inscreveu “sem pretensão alguma” no final de 2017. Para sua própria surpresa, acabou fazendo parte de uma das seis turmas presenciais criadas como piloto da iniciativa. “Quando me ligaram perguntando se eu não queria participar, achei até que era trote”, recorda a Sandra.
Tanto não era que, em poucos meses, Sandra criou seus canais de venda digital, aprendeu a tirar fotos bonitas dos produtos e retomou o contato com as marcas com as quais havia trabalhado. Agora como empreendedora, não mais como artesã. De quebra, graças a uma parceria com uma universidade local, ganhou todo o projeto visual de sua nova marca, incluindo logotipo, etiquetas e cartões de visita.
“Antes do curso, eu nem sabia que existia tudo isso”, confessa. Alice Freitas, por sua vez, comemora o sucesso da Escola de Negócios. “Em seis meses, formamos 700 artesãos”, ela diz, referindo-se apenas às turmas presenciais.
Sim, porque o foco da Rede Asta agora é desobstruir o trânsito entre o fazer artesanal e o consumidor final por meio da tecnologia. “Descobrimos que 46% dos artesãos no Brasil nunca usaram nenhuma tecnologia para vender seus produtos”, informa Alice.
Esse gargalo, segundo Alice, é uma das razões pelas quais os objetos artesanais não chegam ao mercado. “Nossa coordenadora visitou 274 lojistas no Rio de Janeiro para tentar entender porque eles não compram produtos dos artesãos. 95% deles responderam que simplesmente não sabem como achá-los. É uma desconexão muito grande.”
Lançamento da plataforma Entusiasta, da rede Asta. Crédito: Divulgação.
Artesãos da era digital
Assim, somando inclusão social com inclusão digital, a plataforma da Rede Asta chegou, em julho de 2018, com grandes aspirações. Em um único site, também disponível na forma de aplicativo, o artesão encontra uma vitrine virtual para vender seus artigos e uma rede social temática para troca de informações. Tipo um Facebook de artesanato. Além disso, fica à disposição a tal Escola de Negócios na forma de videoaulas gratuitas, sobre temas que incluem modelos de comercialização, planejamento da produção, montagem de coleções e pesquisa de tendências, entre outros.
A Rede Asta ainda lançou um aplicativo complementar à plataforma, destinado a ajudar as artesãs e artesãos a precificar seus produtos. “É tudo automático”, diz Alice Freitas. “Você cadastra os custos fixos, informa quanto precisa vender por mês para gerar renda e o aplicativo já manda o orçamento para o cliente com o preço final do produto.”
Sandra foi uma das primeiras a baixá-lo e, de cara, descobriu que o valor de seu trabalho era muito maior do que calculava. “Antes eu botava preço multiplicando por três, o custo do material. Hoje, eu sei qual é o valor da minha hora trabalhada. Até baixei o cronômetro no meu celular para saber o tempo que estou levando.” Traduzindo em números: antes, ela vendia uma colcha que lhe tomava um mês de trabalho por 180 reais; de agora em diante, graças ao aplicativo, a mesma colcha custará “no mínimo 1500 reais.”.
Daí o sucesso: menos de um mês depois de lançada, a Entusiasta já tinha mais de mil artesãos inscritos. “Queremos chegar a 20 mil no ano que vem”, afirma Alice Freitas. “E, em cinco anos, a 100 mil”. Para alcançar esse objetivo, incubaram a plataforma em uma aceleradora de tecnologia, a AbeLLha. Como mentora, contrataram Ana Julia Ghirello, fundadora do site Bom Negócio, hoje OLX, cujo desafio será o de conduzir a Rede Asta pelos caminhos da expansão como negócio social.
Lançamento da plataforma Entusiasta, da rede Asta. Crédito: Divulgação.
Para chamar investimentos
Segundo Alice, este é o momento para se testar modelos de financiamento. Entre as opções, estão a inscrição em editais, buscar fundos de investimentos de impacto e, mais adiante, a possível cobrança de uma assinatura dos usuários para acesso à plataforma. Por ora, continua tudo gratuito. “A gente quer que os 10 milhões de artesãs e artesãos do país usem, entrem e experimentem a plataforma”, diz Alice.
A julgar por Sandra Portella, a plataforma tem tudo para dar certo. Há pouco tempo, a artesã-empreendedora fez sua primeira venda pela internet. “Fiquei até surpresa”. Sem conhecê-la, nem ter visto os produtos ao vivo, uma mulher de Copacabana encomendou pela página do Facebook sete cactos de crochê para decorar a cozinha. Sandra não botou muita fé, mas enviou os produtos pelo correio e torceu para não tomar calote. Até porque o dinheiro não só imediatamente caiu na sua conta como a mulher ainda encomendou mais sete cactos. “Virou cliente”, comemora Sandra.
Ela diz que está chegando perto do sonho que há muito vem alimentando, o de ser reconhecida. “Queria que as pessoas soubessem que foi a Sandra quem fez.” Agora já sabem! E, para o caso de alguém ainda não saber, ela logo avisa: “Quer que eu mande meu portfólio”? Sim, Sandra Portella agora tem portfólio em PDF. Inclui breve biografia, fotos dos produtos, os links de suas páginas e até linha do tempo.
Este é o primeiro artigo de muitos que escreveremos, após o honroso convite da Aupa para assinarmos esta coluna. Trataremos da vida no “Vale da Morte” – o difícil período percorrido por uma startup para encontrar um modelo de negócio saudável. O objetivo é trazer pílulas de reflexão, provocação, sugestões e conhecimentos para apoiar aos que nele navegam ou desejam navegar.
Qualquer negócio passa por quatro etapas para atingir a “glória”: ideação, validação, desenvolvimento, escala. As quatro etapas de evolução de uma startup possuem características muito distintas, demandando competências, arranjos, estruturas, governança, capital, tecnologia, compreensão sistêmica e “tempos” diferentes para serem superadas.
Muitos empreendedores de negócios de impacto saem das aceleradoras e incubadoras com modelo de negócio idealizado e um primeiro MVP (minimum viable project) na mão, quase sempre em um estágio embrionário, em termos de validação. Mas logo em seguida têm de se aventurar no mar aberto do mercado, na busca da realização dos seus sonhos de transformar a realidade gerando valor social, ambiental e econômico.
Nesta jornada recheada de incertezas, muito se tem falado sobre o “Vale da Morte”, com sua ânsia devoradora de sonhos, evidenciada pela elevadíssima taxa de mortalidade dos negócios que ousam enfrentá-lo. Reconhecido como estando entre as etapas de validação e desenvolvimento inicial, é impiedoso, pragmático, objetivo e muitas vezes cruel.
Exige dos navegantes a capacidade de pilotar em águas turvas e revoltas, com fronteiras e correntes dinâmicas, móveis e traiçoeiras. Infelizmente, muitos subestimam o que encontrarão ou superestimam a sua capacidade de confrontação com esse momento. O preço é alto: ver o seu sonho morrer.
Empreendedores que vivenciam essa experiência e sofrem das suas elevadas exigências serão capazes de reconhecer o que falamos. Para esses e para aqueles que são marinheiros de primeira viagem, esperamos que nossos textos iluminem algumas das sombras da jornada, como faróis em alto-mar.
Na nossa experiência, para elevar as chances de sucesso contra o “Vale da Morte”, a primeira ação necessária é reconhecer, compreender e respeitar profundamente três palavras que sintetizam a sua essência: escassez, volatilidade, nebulosidade.
Recursos
A escassez de recursos adequados é sempre elevada. E muitos se enganam ao pensar que falamos de capital, apenas. Não, estamos falando de recursos de toda a natureza. No “Vale da Morte”, quase não há oferta de capital com perfil aderente, talentos com senioridade, fornecedores preparados e interessados e tecnologia assertiva e afins.
Esses insumos faltam como o oxigênio em elevadas altitudes.
O contexto tem alta volatilidade. Na busca do cliente e do modelo que levará o projeto ao sucesso, tudo pode mudar em alta velocidade: dados, pessoas, decisões, recursos, metas, processos e dinâmicas. São típicas as mudanças contínuas, frequentes e com diferentes intensidades e causas. Muitas das vezes, podem inclusive ocorrer surpresas com grande potencial de destruição.
O horizonte é nebuloso. Como empreendedor, navegar rumo ao futuro idealizado é um ato de surfar a incerteza. Não há respostas certas nem rotas traçadas de antemão. Na maior parte do tempo, somos assolados por dúvidas, solidão, medo, desconhecimento, intuições e conjecturas.
Romper a arrebentação para navegar na imensidão reconfortante dos oceanos azuis é um desafio espetacular. Empreendedores capazes de desenvolver elevada maturidade emocional, forte autoestima e alto espírito de aprendizado, inovação e resiliência são candidatos ao êxito e a celebração merecida. Mas, claro, visão sistêmica, sangue frio, paixão, propósito claro e muita empatia também ajudam.
A partir do próximo artigo, trataremos de explorar mais profundamente as características e possibilidades de nos prepararmos melhor para avançar rumo ao futuro que desenhamos nas nossas mentes empreendedoras.
O Laboratório de Qualidade do Leite da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (LQL/EMBRAPA) presta serviços e realiza análises de qualidade do leite cru, entre elas a contagem de células somáticas (CCS), a contagem de bactérias (CBT) e a determinação de componente do leite. Mas a fiscalização sanitária do queijo canastra e outros laticínios é feito por outros órgãos públicos.
O LQL integra a Rede Brasileira de Laboratórios de Controle de Qualidade de Leite (RBQL), criada pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), segundo informa o site da Embrapa. “As análises nos dão uma ideia sobre o controle de mastite [inflamação das mamas da vaca], a higiene do leite ordenhado e se a concentração dos componentes do leite está dentro de padrões mínimos necessários”, explica Marcio Roberto Silva, pesquisador da Embrapa. Ele realiza projetos de pesquisa investigando patógenos mais frequentes em queijos artesanais de diversas regiões de Minas Gerais e outras do Brasil.
Entretanto, com relação às polêmicas sobre as exigências feitas para produtores de queijos oriundos do leite cru, Silva afirma que os aspectos de qualidade e a segurança do alimento não podem ser negligenciados. E não importaria o tamanho da produção ou fato de serem artesanais.
“Em produtos industrializados, a pasteurização oferece uma segurança extra como parte do processamento do leite ou derivado lácteo. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) afirma que leite não pasteurizado e derivados do leite cru são 150 vezes mais comuns de causarem doenças de origem alimentar e resultam em 13 vezes mais hospitalizações do que produtos lácteos pasteurizados”, explica. A fim de diminuir tais riscos à saúde, o produto artesanal a partir do leite cru deve passar por padrões rígidos de controles sanitários do rebanho, higiene tanto na ordenha quanto na fabricação de queijos.
Aos LQLs da RBQL não cabe à função de fiscalização ou certificação. Ele é um dos laboratórios nacionais credenciados ao MAPA para prestar serviço ao produtor, realizando diversas análises relacionadas à qualidade do leite. “As análises que o produtor poderá realizar no LQL são apenas parte das exigências que ele deverá atingir e envolve controle da mastite e higiene na ordenha, principalmente”, explica Silva.
O pequeno produtor, contudo, deve tomar alguns cuidados para que seu leite seja aprovado para produzir de forma artesanal. “Um dos pré-requisitos básicos é que o rebanho de cada propriedade seja negativo tanto para brucelose quanto para tuberculose animal”, destaca o pesquisador. Tais exames são feitos por veterinários particulares credenciados ao Programa Nacional de Controle e Erradicação de Brucelose e Tuberculose (PNCEBT).
Há ainda outros controles que o pequeno produtor deve fazer para que o queijo passe em todas as demais analises de patógenos veiculados por alimentos, previstos na legislação. “Mas tais análises de patógenos, que eram feitas pelo IMA, antes da aprovação da nova lei federal sobre produtos artesanais – agora passam a ser cobrados por órgãos de saúde pública”, destaca Silva.
Também não cabe à Embrapa a função de fiscalizar e certificar os produtos artesanais – papel dos órgãos de saúde pública, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em junho de 2018, foi aprovada no Senado a . O selo, em geral, levava até dois anos para ser emitido pelo Ministério da Agricultura, para o selo com inscrição ARTE (concedido pelo órgão de saúde pública de cada estado).
É importante que o produtor se atente ao investimento em sua própria educação, visando melhoria de produto e cuidado com impacto social. Para o pesquisador da Embrapa, a educação continuada é a palavra-chave na melhoria da qualidade da produção artesanal de queijos. “Com tal educação, os produtores vão entender os riscos reais à saúde do consumidor, caso algumas práticas não sejam implantadas na produção artesanal. Por exemplo: não dá para pensar em artesanal sem antes erradicar a brucelose e a tuberculose do rebanho”, ensina Silva.
Apesar do nascimento do selo ARTE, a lei precisa ser regulamentada. Ou seja, para o uso legal do selo, o governo precisa atribuir responsabilidade a um órgão federal para a concessão do ARTE. “Possivelmente será o MAPA ou a Anvisa. A lei não deixa claro, pois só menciona que é preciso ser um órgão de saúde pública. Uma vez que o governo defina quem fará a regulamentação, tendo um órgão definido como responsável por ela, cada estado conveniar-se-á ao selo ARTE”, comenta Leite.
Para o pequeno produtor do queijo Canastra, a legislação pesa. “Há um pensamento disseminado no Brasil, vindo da cultura norte-americana, após a II Guerra Mundial, que prega que produzir queijo de leite cru é um risco para a saúde pública. É nada!”, afirma o presidente da APROCAN, João Carlos Leite.
Ele acredita que a criação de leis que marginalizam a produção artesanal garante o retorno apenas ao grande produtor, de escala industrial. “Essa cultura de marginalização perpetuou por quase 50 anos. Graças às ações coletivas enquanto Associação, estamos conseguindo mudar isso. É importante haver o queijo industrial e seus laticínios, assim como é importante o pequeno produtor”, observa Leite.
Além da popularização crescente do queijo Canastra, ele tem um nicho no mercado que atende, também, segundo o presidente da Associação, a “Um público mais elitizado e à alta gastronomia. É melhor ter o produto no Brasil do que importar. Veja que absurdo: era proibido fazer queijo de leite cru no Brasil, porém era liberado importar”, destaca.
O produtor de queijo Igor Silva, que também faz parte da APROCAN, comenta que os produtores associados se encontram em diversos estágios de legalização sanitária, sendo a maioria detentora do selo estadual. “Com a recém-aprovada legislação federal sobre o selo ARTE, em breve espera-se que seja possível comercializar o queijo Canastra em todo país com mais segurança”, pontua. Os pequenos produtores que estão em processo de regularização contam com assessoria prestada pela Associação.
O pequeno produtor encontra para se adequar à legislação e às exigências de órgãos sanitários. O engenheiro ambiental afirma que “Muitos [órgãos] entendem e contribuem em relação ao controle sanitário do rebanho e das boas práticas de ordenha, porém pouco conhecem da produção em si. Assim, tendem a exigir padrões industriais de leite pasteurizado na produção artesanal de leite cru, como a substituição de utensílios tradicionais de madeira por outros de plástico e aço inox”.
Ele ainda destaca a importância da pesquisa acerca do queijo artesanal de leite cru para o próprio entendimento e aplicação viável das leis. “Apesar dos avanços nas últimas décadas, há ainda uma lacuna de conhecimento na ciência em relação às complexas interações microbiológicas em condições topicais que fazem do queijo de leite cru um produto vivo e dinâmico. Precisamos de pesquisas que, de fato, mapeiem as interações microbiológicas com o ambiente da fazenda e da queijaria”, observa.
A APROCAN faz um trabalho de coleta de dados do queijo de leite cru, buscando informações em países como a França, por exemplo. “Com parceiros nacionais, buscamos viabilizar a construção de um centro de pesquisa na região da Serra da Canastra, para que os experimentos sejam realizados o mais próximos possível de onde o queijo é produzido e, portanto, consigam traduzir cientificamente o comportamento do queijo”, afirma Igor Silva, que também é pesquisador.
Caso Rock in Rio e debate público
Em setembro de 2017, na edição VII do Rock in Rio, um dos nomes que compunham o festival teve seus produtos confiscados pela Vigilância Sanitária da cidade do Rio de Janeiro. A chef Roberta Sudbrack** teve cerca de 160 quilos de linguiças e queijos artesanais, no prazo de validade, confiscados. O motivo: dentre os selos que os produtos apresentavam não constava um do Ministério da Agricultura, que permitiria o uso do alimento naquele estado.
O constrangimento burocrático fez com que a . A criação do selo ARTE é uma forma de desburocratizar as exigências legais e sanitárias – e o debate público em torno do episódio envolvendo Sudbrack colaborou para o processo.
Além de Sudbrack, outros chefs de renome também utilizam produtos artesanais de leite cru, como Alex Atala e André Mifano. “O episódio com a Roberta foi a gota d’água. Ela, com a visão de valorizar a gastronomia brasileira, utilizou linguiça e queijo com selo de sistema de inspeção municipal. Ao levar ao Rock in Rio, a Anvisa jogou fora alegando que os produtos contrariavam a lei e seriam risco de saúde pública. Mas fica o questionamento: se no município de origem, o queijo podia ser consumido, por que ele não poderia ser consumido no Rio de Janeiro, considerando que trata-se de uma questão sanitária?”, indaga Leite.
O debate público surgiu, pois, o caso teve grande repercussão midiática. Tal cenário reacendeu o debate também no legislativo, principalmente , que foi aprovada pelo Senado em junho e transformada em norma jurídica. “Hoje, nós podemos dizer que temos certidão de nascimento. Um avanço significativo para quem trabalhou mais de 50 anos na ilegalidade. É preciso, ainda, porém regulamentar a lei”, observa o presidente da APROCAN.
O impacto deste debate é econômico. “Se temos o potencial de comercializar o queijo a cinco vezes mais do que o preço tradicional, isso pode promover uma região mais próspera e rica, com alto valor agregado”, observa Leite.
** A chef Roberta Sudbrack foi procurada por intermédio de sua assessoria, porém não houve respostas para as perguntas apresentadas até o fechamento deste texto.