Qual o papel de uma fundação? E como ela pode exercer ações efetivas em um ambiente hostil e que pede urgência, como a atual crise que vivemos? Diante de um país marcado nos últimos anos pela polarização e suas violências, além do secular panorama caracterizado pelas desigualdades, sobretudo transversais às questões como raça/etnia e gênero, não são questões fáceis de serem respondidas. Porém, há caminhos e nele agentes e instituições que compõem o ecossistema de impacto têm sua responsabilidade social.
A Fundação Tide Setubal desempenha um papel estratégico e protagonista em suas ações voltadas às políticas públicas em territórios. É dela a iniciativa Matchfunding Enfrente, ampliada diante da pandemia do Coronavírus, para apoiar negócios periféricos do país todo. É iniciativa da área de Conhecimento da Fundação também que a pesquisa “O conservadorismo e as questões sociais” (2019). “Nosso papel também está ligado às formas de reduzir a polarização, indo para o concreto, mostrando a vida real – e que a vida real pode ser mais justa com exemplos”, explica Mariana Almeida, superientendente da Fundação e economista.
Na entrevista concedida à Aupa, Almeida destacou a urgência de ações feitas a partir do encontro de diferentes players e saberes, para o enfrentamento de problemas relacionados ao desenvolvimento, à pobreza e às desigualdades nos territórios. “Estar no Terceiro Setor é fundamental para entender os limites deste. Por isso, é preciso fomentar os encontros e a sinergia de pensar novas alternativas”. Confira o diálogo completo.
AUPA – Diante da pandemia, como A Fundação Tide Setubal entende a urgência das atuações de Organizações da Sociedade Civil?
Mariana Almeida – A missão da Fundação sempre foi buscar alternativas para superar as desigualdades. A pandemia tornou isso ainda mais agudo e mais forte, porque aquilo que já é difícil no cotidiano se torna ainda mais agora. Você não pode, com as diferenças que existem nessa estrutura de sociedade, referente, por exemplo, ao acesso a serviços, dizer que é a mesma coisa para quem mora nos centros e nas periferias. São situações totalmente diferentes. Aí, na verdade, como sempre, o papel do Estado seria importante e, no nosso caso, a obrigação da sociedade civil é chamar mais ainda a atenção para isso. Devem ser soluções que devem ser pensadas sempre, não só agora.
AUPA – As ações da Fundação voltadas à pandemia também são de longo prazo, para abordar ainda mais pessoas, como no Matchfunding Enfrente.
Mariana Almeida – Para nós, as soluções para superar as desigualdades e criar as oportunidades nas periferias partem também das próprias periferias. Valorizamos muito a potência que existe na periferia e já vínhamos com essa intenção antes mesmo da pandemia: valorizar soluções em periferias, projetos e pessoas, a partir da combinação e da colaboração. Então, é preciso caçar recursos externos, captar também recursos de fundações e apoiar ideias vindas das e nas periferias. Esse era o plano inicial do Enfrente. Com a pandemia, muitas periferias deram uma grande aula de identificação das necessidades e de solução dessas necessidades. Quantas limitações locais não foram muito mais efetivas em fazer chegar o benefício, por exemplo, do que o próprio Estado, não é? Como é que, no longo prazo, podemos pensar nesse relacionamento e na valorização dessa potência periférica? O Enfrente se reorganizou tentando identificar justamente quais ideias vinham da periferia. Assim, ampliou sua rede de apoiadores e, com isso, conseguimos atingir mais projetos nesse momento. Então, continuamos captando e tentando seguir pensando qual deve ser o próximo passo. Hoje, o Enfrente conta com cerca de 790 iniciativas inscritas. A necessidade é grande. Por outro lado, é legal que tantas iniciativas se encontrem em algum lugar, porque também acreditamos muito na rede. É legal ter acesso a tantos projetos, idéias e gente que quer fazer coisas diferentes, porque podemos também tentar fomentar essa relação entre as pessoas e ampliar o impacto.
View this post on InstagramA post shared by Fundação Tide Setubal (@fundacaotide) on
As organizações que fomentam o Matchfunding Enfrente hoje são: Itaú Social, Fundação Tide Setubal Instituto Galo da Manhã, Fundação José Luiz Egydio Setúbal, Fundação FEAC, Fundação ARYMAX, Instituto Humanize, Instituto GPA, Instituto Arapyaú e Benfeitoria.
AUPA – Com a pandemia, as desigualdades ficaram ainda mais gritantes. E a Educação não escapou disso: a tentativa de ensino com aulas e atividades on-line esbarra no problema de acesso à internet e ao aparato eletrônico. Considerando a trajetória da Fundação, embora não trabalhe diretamente com educação, como se dará a atuação nesta área?
Mariana Almeida – A Neca Setubal [presidente da Fundação] tem uma trajetória na educação. Trabalhamos no território e quando você está nele é impossível não falar de educação, porque ela é um grande organizador das atividades e permeia a vida da maioria das pessoas. Então, falamos também de educação, mas o nosso eixo principal é o território. Estamos sentindo exatamente por estarmos no território. Sentimos na pele – na nossa pele não, mas na de quem trabalhamos juntos –, as imensas dificuldades, que são físicas e de infraestrutura mesmo: da internet que não há, do espaço físico inexistente para estudar. Vemos esses vídeos que falam “Procure um cantinho em silêncio na sua casa”. Sabemos que há casas onde vivem muitas pessoas e não têm esse cantinho silencioso. Não é possível de se determinar, não é tão simples. Então, tem uma questão de infraestrutura e tem também uma questão também mais subjetiva. É um modelo totalmente diferente de processo de aprendizagem, que os pais também sentem dificuldade, no sentido de “Como assim? Meu filho vai ficar no celular, estudando, o que é isso?”. Há várias dificuldades envolvidas. Isso é um grande desafio, que certamente vai marcar, infelizmente, de maneira aprofundada as desigualdades já existentes no sistema educacional brasileiro e aí vamos ver como conseguiremos, a partir de agora, juntar forças para, então, criarmos a solução. Quanto à questão da desigualdade, dado o movimento todo que está acontecendo, a sensibilização pública para o tema, quem sabe conseguimos a solução comprometendo recursos públicos e privados para reverter essa situação.
AUPA – A Fundação tem uma área de Conhecimento e também trabalha com outros centros que fazem pesquisa, por exemplo, o portal IDeA – que surgiu de uma iniciativa da própria Fundação Tide Setubal. Comente, por favor.
Mariana Almeida – Entendemos o Terceiro Setor como um grande articulador. Não temos a pretensão de resolver os problemas diretamente nossos, com os nossos projetos e a nossa forma de fazer. Na verdade, tentamos justamente fomentar o encontro de diversos setores: cada um em sua área de expertise, de modo que possam se encontrar. A geração de conhecimento é muito importante, tem um papel fundamental. Então, fazer a academia se encontrar com projetos periféricos, por exemplo, faz parte da nossa missão. Como é que você permite esse encontro e aproveita esse conhecimento que é gerado no território e também reaproveita os conhecimentos do território na academia? É essa a via de mão dupla. Então, a nossa área de Conhecimento é de fomento à pesquisa e de estímulo à formação do próprio conhecimento.
“Na pesquisa, trouxemos como hipótese se o conservadorismo significa afastamento da importância da justiça social. Descobriu que não: às vezes, a forma de falar as coisas e pensar nas soluções é diferente. A intenção de uma sociedade mais justa está presente, pelo menos em um grupo dos conservadores. Entre os mais extremados [o meio entre as duas pontas] tem muita coisa, não é? É preciso entender como se comunicar com os diferentes públicos, tentar partir do que pode nos unir. Superar a polarização também significa superar os seus próprios preconceitos. Não é convencer o outro”.
AUPA – A Fundação tem um papel importante como intermediária, para fazer essa articulação que você mencionou. Há a atuação no Galpão ZL, no Jardim Lapena (São Paulo/SP), assim como o diálogo com outros players, como o BID. Como propor e deixar efetiva uma ponte em um ambiente tão polarizado como o que vivemos agora?
Mariana Almeida – Essa é uma grande pergunta. Temos estudado, inclusive, sobre como superar a polarização e procurar novos horizontes utópicos com o mundo. Quer dizer, como pensar a nossa sociedade de um jeito que faz sentido para todos? A nossa defesa é de uma sociedade de mais equidade, justa e isso tem que ser algo que tem a maioria, que tem adesão. Quando falamos de trazer a periferia e mostrar a potência desta, é mostrar que as pessoas que estão em uma ponta da ponte têm muita potência, têm muito conhecimento, têm muita capacidade de inovação. As outras também têm a aprender desse lado aqui.
É mostrando no concreto o que pode ser feito e o que já está sendo feito – e pode ser até ainda maior se as pontes forem cruzadas.
AUPA – Quando essa participação é pública, também há um aspecto que é político. Não tem como escapar. Qual é a atuação da Fundação junto ao Poder Público, no que diz respeito ao desenvolvimento de Políticas Públicas? Vocês têm algum diálogo com o grupo da ENIMPACTO?
Mariana Almeida – Na verdade, temos vários parceiros que estão mais envolvidos diretamente na ENIMPACTO. Não nos envolvemos tanto. Temos trabalhado com o Poder Público mais local, como a Prefeitura de São Paulo – trabalhando de que maneira a gestão dos orçamentos públicos pode favorecer a redução da desigualdade. Então, tentamos entender como o gasto público pode ser planejado, distribuído e dirigido de uma maneira mais efetiva. Então, desenvolvemos alguns sistemas para regionalizar o orçamento da Prefeitura de São Paulo, para saber aonde ela gasta, de que forma, que tipos de indicadores ela pode usar para distribuir melhor, como é que a gente usa os dados que existem para melhorar os gastos, principalmente de infraestrutura. Trabalhamos muito com o Poder Público nesse sentido, tentando ajudar ele a inovar. Junto com a academia é possível desenvolver e testar soluções, para que depois elas se incorporem à lógica pública, que é onde, de fato, pode fazer uma grande diferença.
AUPA – Há um aspecto que chama a atenção na Fundação Tide Setubal: ela leva o nome de uma mulher, foi fundada e é presidida por uma mulher, tem várias lideranças que são femininas, vários cargos de chefia são de mulheres, como o seu. Comente sobre este protagonismo evidente, por favor.
Mariana Almeida – A Fundação tem um papel bem importante, com uma visão de que a sociedade é adversa e a diversidade passa pela questão de gênero, assim como pela questão de raça, então, ela traz para dentro, pois é preciso praticar isso. Não adianta só tratar tais questões como uma solução para fora. A Fundação se preocupa em ter diversidade de gênero e raça, tanto em geral quanto nos cargos de liderança. Temos um grupo estratégico dentro da Fundação que discute esta pauta, formado por 70% mulheres, 50% negros, 50% brancos. É uma preocupação mesmo. A sociedade, se você se deixar levar pela maré, ela vai reproduzir as desigualdades. Temos muita consciência disso: para acabar ou diminuir as desigualdades tem que virar uma chave e nadar contra a maré. Isso funciona para mudarmos também as Políticas Públicas e também pensarmos o investimento social privado. É um jogo que se joga em todos os níveis.
É preciso ter este cuidado também nos processos seletivos. Dificilmente, o currículo mais qualificado será de uma mulher negra. Porque no currículo das mulheres negras não vai ter a experiência (que dizem) que você precisa para um determinado cargo, porque possivelmente essa mulher não teve a oportunidade. Então, ir contra a maré não é tarefa simples e é preciso bancar este posicionamento. Por isso a importância da liderança para puxar esse assunto. A liderança tem que tomar isso para si e tem que constituir e ser institucional para isso. Nós também temos problema e é preciso estarmos atentos e repensando o tempo inteiro. Constituímos neste ano uma comissão de diversidade na Fundação, que trata a diversidade em seu sentido amplo, além da acessibilidade. Apesar de termos uma equipe diversa, não havia uma comissão de diversidade para que pudéssemos avaliar o que significa, para a toda a equipe, isso e como é que podemos melhorar. Não está resolvido. É um processo contínuo de amadurecimento interno.