Embora o Brasil não esteja na liderança da corrida mundial pela compra e aplicação de vacinas contra a Covid-19, o país é campeão na compra de agrotóxicos. Em relação ao uso dessas substâncias, só perde para a China e os Estados Unidos, que atualmente utilizam mais que a nossa média nacional – um bilhão de litros de agrotóxicos por ano.
Os agrotóxicos, ao contrário das vacinas, são substâncias que servem para matar. São aplicados na agricultura para matar insetos, fungos, plantas, dentre outros organismos considerados pragas agrícolas. Usados principalmente no cultivo de monoculturas em larga escala, como soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e pastagem.
Desde 2004, houve um crescimento exponencial de aproximadamente 700% no uso de agrotóxicos no Brasil. Assim como um aumento de impactos negativos sobre a saúde humana e ambiental, relacionados à contaminação gerada por esses produtos tóxicos, afirmam especialistas.
“A contaminação do ar, do solo, das águas superficiais e subterrâneas e de todos os organismos vivos – causada pelo uso indiscriminado de agrotóxicos – ocorre de maneira continuada, silenciosa e invisível”, explica Nelson Lorenz, técnico do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), com atuação no monitoramento de resíduos de agrotóxicos em alimentos e na água.
Impactos à saúde e violações de direitos
Denúncias sobre o efeito nefasto dos agrotóxicos à saúde têm sido feitas ao redor do mundo desde 1962, após a publicação do livro Primavera Silenciosa (Silent Sping, Houghton Mifflin, 1962) pela bióloga americana Rachel Carson. No Brasil, inúmeras organizações da sociedade civil vêm fazendo essas denúncias, incluindo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Segundo nota lançada pelo INCA, o uso intensivo de agrotóxicos “Contamina todas as fontes de recursos vitais, incluindo alimentos, solos, águas, leite materno e ar”, acarretando riscos a toda a população humana e animal. “Dentre os efeitos associados à exposição crônica [i.e. ao longo prazo] a ingredientes ativos de agrotóxicos, podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer”, destaca a organização.
O Observatório do Uso dos Agrotóxicos e Consequências para a Saúde Humana e Ambiental do Paraná faz um monitoramento constante desta problemática. É formado por um grupo de pesquisadores, incluindo docentes e discentes da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e de outras universidades, além de técnicos de saúde e de organizações civis envolvidas no assunto, conforme explica Guilherme Albuquerque, professor do Departamento de Saúde Coletiva da UFPR e coordenador do Observatório.
Albuquerque diz que problemas de saúde associados à exposição direta ou indireta aos agrotóxicos são “Evidenciados principalmente por alterações psiquiátricas, neurológicas, imunológicas, pulmonares, hepáticas, renais, e gastrointestinais”. Ele aponta também que “Outra característica gravíssima dos agrotóxicos é seu efeito carcinogênico”, podendo induzir o desenvolvimento de vários tipos de câncer, como de próstata, mama, pulmões, entre outros. Além de impactar a vida da fauna e flora, a ponto de gerar um desequilíbrio ecológico.
A Organização das Nações Unidas calcula que a intoxicação agravada pelo uso de agrotóxicos seja a causa de morte de aproximadamente 200 mil pessoas todos os anos, principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil. Trabalhadores agrícolas e residentes em áreas rurais são particularmente afetados.
Larissa Milkiewicz, advogada especialista em Direito Econômico e Sustentabilidade, afirma que o uso incorreto dos agrotóxicos pode acarretar danos ao meio ambiente e à saúde humana. “Entende-se como o uso incorreto, por exemplo, a aplicação sem equipamento de proteção individual; a aplicação exagerada sob justificativa de alcançar o resultado químico mais rapidamente; e/ou a falta de conhecimento técnico do usuário acerca das consequências nefastas do uso inadequado do produto”, destaca Milkiewicz.
Entretanto, “O uso e o controle dos agrotóxicos, no Brasil, é extremamente irresponsável”, diz Albuquerque. Primeiro, porque os limites máximos de resíduos de agrotóxicos em alimentos e na água, definidos pelas agências reguladoras, desconsideram a ação cumulativa e sinérgica dos mesmos dentro do organismo vivo. Segundo, pois análises mostram com frequência a presença dessas substâncias em níveis acima do limite permitido ou proibidas para uso, explica o pesquisador.
No último Programa de Avaliação de Resíduos de Agrotóxicos, por exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) encontrou resíduos acima do limite permitido ou substâncias proibidas em 23% dos 4.616 alimentos analisados. Ainda, com base em dados do Ministério da Saúde, foram detectados 27 pesticidas na rede de abastecimento de água de uma em cada quatro cidades brasileiras entre 2014 e 2017. Dentre os pesticidas encontrados, 16 são classificados pela Anvisa como extremamente ou altamente tóxicos, e 21 estão proibidos na União Europeia devido aos riscos que oferecem à saúde e ao ambiente.
Pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) argumentam que o elevado índice de contaminação das águas do estado de Santa Catarina com agrotóxicos configura uma violação de Direitos Humanos, em particular o direito à Saúde. E, caso providências não sejam tomadas pelas autoridades competentes, a situação pode evoluir para um ecocídio hídrico – ou seja, causar a destruição de ecossistemas de modo que vidas sejam gravemente impactadas, tornando-se um crime contra a humanidade. Para evitar que isso aconteça, é necessário o controle rigoroso do uso e fabricação dos ingredientes ativos e a transparência das informações sobre os riscos dos agrotóxicos para o meio ambiente e a saúde pública, explica Lorenz, mestrando em Ciência Jurídica pela UNIVALI e técnico do MPSC.
Abusos de poder
A falta de rigorosidade e transparência no controle de agrotóxicos no Brasil confere solo fértil para o desenvolvimento do lucrativo mercado do veneno. Pelo menos quatro grandes fabricantes desses produtos – a norte-americana FMC Corp, a dinamarquesa Cheminova A/S, a alemã Helm AG e a suíça Syngenta AG – vendem em solo brasileiro produtos banidos em seus próprios mercados internos, conforme revelou a Reuters. Além disso, aproximadamente um terço da receita, cerca de US$4,8 bilhões (aproximadamente R$25 bilhões), das maiores multinacionais agroquímicas vem de produtos classificados como “altamente perigosos”, que têm como destino principal o Brasil.
Os limites de resíduos de agrotóxicos em alimentos e na água permitidos pela lei brasileira, que são muito superiores do que em outros países, também favorecem as empresas desse setor. “O limite [de resíduos na água potável] estabelecido para o glifosato, agrotóxico mais utilizado no Brasil, é cinco mil vezes superior àquele estabelecido na União Europeia”, aponta Albuquerque. “O estabelecimento de tais limites sofre frequente influência dos representantes do interesse do mercado dos venenos”, diz o pesquisador.
O Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia (2019) também mostra que na soja brasileira há 200 vezes mais resíduos de glifosato do que o atualmente permitido na Europa. Aliás o glifosato, devido à existência de provas sobre o seu efeito cancerígeno, já foi banido em dezenas de países. No Brasil, de acordo com uma reavaliação feita pela Anvisa em 2019, que indicou que o glifosato não causa prejuízos à saúde, esse agrotóxico continua sendo amplamente usado.
Segundo Cleber Folgado, advogado e membro do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, há uma flexibilização das normas de regulação dos agrotóxicos em processo no país. “O denominado ‘PL do Veneno’, referente ao Projeto de Lei n. 6.299/2002, que contém um conjunto de propostas que mudarão por completo o sistema normativo regulatório tal como o conhecemos, vem sendo posto em prática pelo atual governo”, diz Folgado.
Exemplo disso é o número recorde de liberação de agrotóxicos durante o governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Só nos últimos dois anos, quase mil agrotóxicos foram aprovados para uso pelas agências reguladoras no país. Foram 493 produtos aprovados em 2020 – em média, quase 10 agrotóxicos liberados por semana, sendo que 90% das aprovações ocorreram após o início da pandemia – revelou uma investigação conjunta da Repórter Brasil com a Agência Pública.
Estas flexibilizações regulatórias favorecem não só as multinacionais do veneno, como também o agronegócio voltado à produção de commodities para exportação, que consome quase 90% dos agrotóxicos a nível nacional. Em suma, atende aos interesses econômicos e políticos da bancada ruralista.
Outro benefício extraordinário concedido ao setor são as isenções de impostos dadas pelo governo às empresas que produzem e vendem agrotóxicos no Brasil, que somam cerca de R$10 bilhões por ano. Esse valor, além de ser quase quatro vezes o orçamento total do Ministério do Meio Ambiente em 2020, possibilitaria a compra de vacinas contra a Covid-19 para cerca de 100 milhões de brasileiros, contribuindo para imunizar metade da população.
E daí?
O poderoso mercado do veneno precisa ser contestado e controlado. Caso contrário, cada vez mais resíduos de agrotóxicos altamente perigosos à saúde estarão presentes nos alimentos, na água, nos solos e no ar. E, possivelmente, até nas ruas das cidades brasileiras.
Organizações da sociedade civil estão ajudando a denunciar e mobilizar ações contra os riscos do uso excessivo e irregular de agrotóxicos. Em oposição ao PL do Veneno, por exemplo, está em processo o Projeto de Lei n.º 6670/2016, que propõe a criação de uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos. “Trata-se de um projeto de vida, que tem como horizonte o fortalecimento da agroecologia e a construção de mecanismos que possam restringir o uso de agrotóxicos” na agricultura, diz Folgado.
A agroecologia engloba um conjunto de técnicas agrícolas que fazem uso de pouco ou nenhum insumo agroquímico e o controle biológico de pragas. Embora representantes do mercado do veneno defendam que o uso de agrotóxicos é necessário para produzir alimentos em grande escala, há evidências que as práticas agroecológicas aumentam a produtividade agrícola no longo prazo.
“A proposta não envolve o retorno nostálgico a uma agricultura precária, pouco produtiva, não guiada pela ciência”, explica Albuquerque. “O financiamento, o amparo, o desenvolvimento e a disponibilização de tecnologia agrícola livre de agrotóxicos é fundamental e muito beneficiaria nossa produção agrícola, nossa alimentação e nossa saúde”.
Inverter os incentivos financeiros e legais – do uso de agrotóxicos para o não uso dessas substâncias químicas – na agricultura, é uma forma de estimular a adoção de práticas mais saudáveis e sustentáveis no setor. Na França, por exemplo, o governo pagará €2.500 (aproximadamente R$16.000) aos agricultores que abandonarem o uso do agrotóxico glifosato. Já no Brasil, provavelmente caberá à população reivindicar o direito à produção e ao acesso a alimentos com pouco ou nenhum resíduo de agrotóxicos.
“O direito à produção de alimentos saudáveis é um aspecto de outros direitos fundamentais existentes na Constituição Federal, tal qual o direito à Saúde, ao Meio Ambiente e à Alimentação”, diz Folgado. “De modo que, torna-se correto afirmar e reivindicar um direito à agroecologia, o que por sua vez impõe ao Estado a responsabilidade de auxiliar no processo de transição agroecológica, com recursos financeiros adaptados para essa realidade”.