Ter um trabalho é mais do que uma forma de estar inserido na sociedade: é também um direito assegurado em lei. De acordo com a Constituição de 1988, o valor social do trabalho é fundamento da República Brasileira (art. 1º, IV). Os direitos sociais estão dispostos no capítulo II do título II – Direitos e Garantias Fundamentais.

Entretanto, o acesso a esse direito tem sido cada vez mais penoso  no Brasil. Atualmente, o país tem 14,8 milhões de desempregados, o maior número registrado desde o início da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, em 2012. A taxa de desocupação para o primeiro trimestre de 2021 foi de 14,7%.

Em um período marcado pelo contexto pandêmico, o país registrou queda de 7,8 milhões de postos de trabalho no primeiro trimestre de 2021, quando comparado ao trimestre anterior.

Ainda, de acordo com os dados da PNAD Contínua, para as 85,9 milhões de pessoas ocupadas no país, a informalidade está presente em 34 milhões delas. 

Ednusa Ribeiro, cofundadora do Coletivo Meninas Mahin, que busca fortalecer o empreendedorismo das mulheres negras, comenta sobre a realidade informal presente nas relações trabalhistas atuais:

“Cada vez mais teremos menos acesso à CLT e a contratação será como PJ. Quando falo de contratação PJ, é MEI (Microempreendedor Individual). A pessoa precisa ter educação para pagar impostos e fazer plano de saúde pelo MEI”.

Confira a entrevista na íntegra. Clique aqui

A desigualdade já tão latente no país ficou ainda mais aprofundada pela crise advinda da pandemia causada pela Covid-19. Segundo a pesquisa “O futuro da Inclusão Produtiva”, da Fundação Arymax, apenas 24,6% da mão de obra do país se encontrava em setores que não foram impactados pela pandemia.

Balança desigual
A pandemia causada pela Covid-19 trouxe efeitos em escala global, mas pesquisas apontam que seus impactos são distintos de acordo com o público. No mercado de trabalho, os mais vulneráveis são mulheres, negros, jovens e profissionais mais pobres e com baixa escolaridade – segundo dados do DIEESE

Confira a entrevista na íntegra. Clique aqui

Além dos jovens, o mercado de trabalho para as mulheres foi impactado com a pandemia. Apesar de serem maioria em idade para trabalhar (53,3%) – segundo dados da PNAD Contínua referente ao primeiro trimestre de 2021, são as que menos ocupam os postos de trabalho.

As mulheres também são as mais afetadas no cenário de desocupação. No primeiro trimestre de 2021, elas representavam 54,5% das pessoas desocupadas no país, o maior percentual desde 2015 – período em que a PNAD Contínua iniciou a série. 

Quando ocupam os postos de trabalho, a diferença salarial ainda persiste para as mulheres em todo o país.

A balança desigual se estende para a América Latina, com 13 milhões de mulheres que perderam seus empregos na região desde o início da pandemia, segundo o último Panorama Laboral da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O dado gerou um retrocesso de mais de uma década em avanços na participação feminina no mercado de trabalho na América Latina e no Caribe, de acordo com o relatório especial da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal)

Empreendedorismo à força
Com a alta do desemprego, os postos de trabalho encolhendo e a queda de renda, o empreendedorismo nasce como forma de sobrevivência. Em 2020 foram abertos 2,6 milhões de microempreendedores individuais (MEI)  – um aumento de 8,4% em relação a 2019, segundo dados do Mapa de Empresas. O estudo, divulgado em fevereiro deste ano pelo Ministério da Economia, revelou que 2020 terminou com 3.359.750 novas empresas no Brasil, número 6% maior do que o registrado em 2019.

O crescimento de novas empresas vem acompanhado de diversos desafios, especialmente para microempreendedores. Durante a crise advinda pelo novo Coronavírus, por exemplo, 58,9% dos negócios interromperam o funcionamento temporariamente, afirma pesquisa realizada pelo Sebrae no início da pandemia. 

Apostar na formação dos egressos no universo do empreendedorismo tem sido a estratégia de organizações sociais para fortalecer este público frente ao cenário de crise. É o que faz a Aventura de Construir que, inicialmente, trabalhava com microempreendedores da periferia da Zona Oeste de São Paulo, e agora expandiu a atuação para todo o Brasil:

“O maior desafio é a sustentabilidade desses microempreendedores. Eles precisam ser formados e fortalecidos”.

Confira a entrevista na íntegra. Clique aqui

Assim como no mercado de trabalho formal, na “sevirologia” do empreendedorismo, negros, mulheres e periféricos também são impactados. Ednusa Ribeiro, cofundadora do Coletivo Meninas Mahin, fala sobre essa realidade:

“As mulheres negras empreendem, majoritariamente na dor, não necessariamente porque querem empreender, mas por necessidade”.

A necessidade de geração de renda destacada por Silvia e Ednusa se reflete nos dados, já que a redução do salário é uma constante para o trabalhador brasileiro.

Segundo pesquisa da FGV Social, a renda individual de quem trabalha teve uma queda média de 20,1% em 2020, que foi impulsionada pela redução da jornada de trabalho média de 14,34%.

Todos esses fatores contribuem para o chamado “empreendedorismo à força”, que muitas vezes faz surgir negócios menos estruturados, especialmente em territórios periféricos. Essa é a visão de Márcio Teixeira, sócio-fundador da A Banca, que atua no ecossistema de negócios de impacto periféricos desde 2008:

“É mais difícil você ver uma pessoa montando um negócio na periferia durante a pandemia, porque ela não tem grana. Ela vai empreender na escassez mesmo”.

Confira a entrevista na íntegra. Clique aqui

A pandemia forçou a entrada de vários negócios para o ambiente on-line, representando um complicador para empreendedores periféricos quanto ao uso e à acessibilidade dessas tecnologias. 

Para Ednusa Ribeiro, mesmo em São Paulo – que é considerado o maior polo econômico do país – a desigualdade digital é profunda:

“O cenário da desigualdade digital ficou latente. Isso que São Paulo é a capital econômica do Brasil”.

Apoiar pequenos negócios para a era da digitalização, inclusive, é um dos caminhos recomendados pelo estudoO futuro da Inclusão Produtiva”, da Fundação Arymax, para aumentar a produtividade e garantir a sustentabilidade do empreendimento neste contexto de crise.

Outra reflexão levantada por organizações é sobre a distribuição desigual de renda. Enquanto a pobreza é aprofundada pela crise, o aumento de bilionários foi registrado durante este período. De acordo com levantamento do banco suíço UBS e da PwC, divulgado em outubro de 2020, o número de bilionários espalhados pelo mundo passou de 2.158, em 2017, para 2.189, em 2020. A lógica desigual deste cenário é destacada por Márcio Teixeira, da A Banca:

“Ao mesmo tempo que na pandemia tivemos muitos negócios fechados, tem muita empresa grande faturando muito mais”.

Doações filantrópicas e investimento de impacto
Desde o início da pandemia, mais de R$6 bilhões foram doados, segundo dados do
Monitor das Doações Covid-19. Porém, deste montante apenas 3% são para projetos de geração de renda, e 74% deles são destinados à área da saúde. Isso demonstra uma centralização das causas em que os recursos estão sendo aplicados. 

As doações e a filantropia surgem para apoiar momentos emergenciais como o de agora. As doações e a filantropia surgem para apoiar momentos emergenciais como o de agora. Mas e a longo prazo? Como transformar doações pontuais em investimentos que vão causar impactos mais duradouros em comunidades mais vulneráveis? Camila Aloi, gerente de relacionamento institucional do GIFE, reflete sobre esses conceitos:

“O dinheiro da filantropia segue sendo fundamental para a agenda de direitos humanos”.

Confira a entrevista na íntegra. Clique aqui

Márcio Teixeira, que trabalha com empreendedorismo na periferia, acredita que grandes empresas podem fazer mais para apoiar este momento de crise:

“Os institutos e fundações das grandes empresas deveriam ter um olhar mais apurado para isso”.

Com negros majoritariamente na linha de frente dessas desigualdades, surge a necessidade de a filantropia e o investimento social privado atuarem mais para apoiar este público, segundo Camila do GIFE:

“Eu não posso falar de mudança, emprego e renda, se eu não penso como se pode olhar a partir dessa lente racial”.

Os conceitos de filantropia, responsabilidade social e investimento de impacto estão adquirindo uma presença renovada na perspectiva da contribuição que deles se espera diante de uma série de situações e problemas que afetam a sociedade como um todo. Mas Camila Aloi aponta que também é importante ressaltar o papel central do Poder Público com políticas efetivas:

“Existem temas na sociedade que a filantropia e o investimento social privado podem vir a dar conta, mas existem outros que apenas com a escala do poder público vamos conseguir transformar a situação”.

As consequências socioeconômicas da pandemia e também do movimento econômico anterior a ela serão sentidas no dia a dia do brasileiro ao longo dos próximos anos. Quais serão as saídas efetivas e políticas a serem adotadas com foco na geração de emprego e renda? Que retrato de país podemos projetar com a consolidação do afrouxamento de Direitos Trabalhistas, o aumento da informalidade e dos adeptos ao MEI? Que respostas e iniciativas condizentes com a proposta de lucro e mudanças sociais o ecossistema de impacto socioambiental pode nos fornecer nesta realidade? Perguntas cujas respostas estão muito além do setor e devem estar condizentes às demandas da população – precisam fazer parte da vontade política e também do Brasil pensado para além de 2030.

Créditos
Reportagem: Allan Brito e Angélica Weise.
Edição: Laiza Lopes e Fernanda Patrocínio. 
Design: Daniel Pereira.

Deixe um comentário

Digite seu comentário
Digite seu nome