1) O dia a dia da escola pública te ensina a enfrentar pressão e dificuldades. Qual o maior aprendizado que você tira dessa situação de estresse? Como é ser uma diretora de escola na periferia?
A Educação é um espaço de construção e esperança. Situações de estresse são cotidianas no trabalho por se tratar de instituição com cidadãos em formação e no momento de maior fragilidade e potencialidade de seus corpos e vidas. Ser diretora na periferia é ter embrenhado o papel de educadora na integralidade e reconhecer o papel social da escola. A “competição” com o que acontece fora dos muros é desleal! Nos extremos da periferia a única instituição que tem capilaridade para todos é a escola, nenhum outro direito é garantido. Em especial com os adolescentes, o acesso à cultura, lazer e ao esporte fora do espaço escolar é praticamente inexistente. São mais suscetíveis a outros tipos de aliciamento pois ficam muito tempo na rua e sem supervisão. Os bairros são dormitórios e as famílias trabalhadoras passam boa parte do tempo no transporte público e trabalho. Estes são aspectos que não podem ser desconsiderados. Precisamos saber onde, para quem e por que oferecemos o nosso trabalho sempre com máximo de presteza num contexto em que o povo é acostumado a ser desrespeitado.
2) E sobre o trabalho com educação de crianças e adolescentes. Eles te ensinam algo? Como é essa relação de troca e como foi a pandemia
Penso que ser educadora é ter a capacidade de se realizar no outro. Todo professor é embalado por uma alegria imensa a cada pequena conquista: quando leem pela primeira vez, quando são protagonistas numa atividade externa, quando estão esplêndidos numa mostra cultural ou todos saudosos na formatura. Trabalhar com crianças e adolescentes é também sempre estar atualizado com gírias, músicas e personagens infantis e também é ter contato com diferentes realidades e vivências. A relação de troca e cuidado são constantes, até mesmo num momento difícil! Outro dia uma criança de 11 anos me procurou e relatou uma situação de violência sexual vivida em casa. Imagine a confiança e desespero que sentiu ao decidir contar isso para a diretora da escola? Muitos educadores são considerados pontos de confiança. Por eles não podemos falhar. A escola é um espaço que cabe a todo mundo e não podemos esquecer isso. A pandemia nos trouxe um sentimento da importância de valorizar o essencial, o que nos sustenta, o imprescindível. Ser modelo, educador em tempo integral e no contexto de precarização e desrespeito, inclusive por autoridades, não é algo fácil, mas precisa ser uma decisão. A precarização é tão presente no nosso cotidiano que aprendemos a agir com a tal criatividade desde a formação no magistério. Ser educador não é dom, é escolha. E não é qualquer escolha, pois traz consigo a militância por melhores condições de trabalho e de construção de um mundo melhor. Se isso ainda te move mesmo que precise de pausas para cuidar de si, a escola ainda é seu lugar. Juntos somos mais fortes!
1) O que um coaching diria para quem busca cuidar da saúde mental? Quais conselhos daria para quem quer ter mais qualidade de vida e convive com a ansiedade?
Ficar atento aos sinais físicos e emocionais, de falta ou excesso. Por exemplo, dores de cabeça repentinas e que se repetem em determinadas situações. Aqui existe um gatilho! Cada caso é um caso, mas ter qualidade de vida é uma decisão, para quem quer viver melhor. É necessário estar atento as escolhas diariamente. Ter mais qualidade de vida, é sair da zona de conforto, e mudar o modelo mental de como está procedendo até o momento. As escolhas para uma qualidade de vida, promovem bem estar imediato e os índices hormonais se equilibram. Os conselhos mais básicos parecem ser os mais difíceis de serem mudados, exatamente porque estão arraigados a anos em nós. Dormir melhor fazendo a higiene do sono, se alimentar melhor comendo mais frutas e verduras cruas. Se exercitar fisicamente, conviver com amigos e familiares. Trabalhar em algo prazeroso. E se divertir se desligando da rotina. Crie mini metas, um pouquinho todo dia. Por exemplo: para uma alimentação saudável, escolha 1 alimento que não vai mais comer por uma semana, ou ao contrário um alimento que vai introduzir na sua mudança alimentar. Crie blocos de horários estratégicos na agenda. Não deu certo, mude o horário, até se sentir a vontade para fazer e não desista. Parece pouco, mas estamos construindo um caminho neural novo! Não renegocie com você! Apenas faça o que estipulou.
2) A vida profissional atual está cheia de pressões e a construção de uma carreira é cada vez é mais instável. Como preparar a mente para esses novos tempos e um futuro incerto?
O mercado de trabalho mudou muito nos últimos anos, o ensino ficou mais democrático, as necessidades mudaram e a tecnologia protagonizou uma parte muito grande desta mudança. Funções que não existem mais, modus operandi revisitado, novas profissões, novas abordagens na liderança, modelos disruptivos e tantas outras coisas. Não se pensa mais em ter apenas uma carreira na vida. É uma mudança de mindset. Estávamos operando com um mindset fixo, com um roteiro mais ou menos estabelecido e um mercado de trabalho que não mudava muito. Agora, perdemos a referência, mas ganhamos em protagonismo. A possibilidade de cada um pensar de que modo pode ser mais feliz trabalhando, o que se escolhe fazer, a partir do que se faz melhor é um ganho para todos os envolvidos na cadeia produtiva. Um resultado com mais excelência. Soma-se a isso o conceito de lifelong learning, como um modelo ativo de aprendizagem. Saindo de um mindset fixo para um mindset de crescimento.
Foram 4 dias de sessões plenárias e mais de 1000 pessoas imaginando novos futuros e e possibilidades para o mundo. O projeto wellbeing fez de Bilbao, no país basco, um espaço para pensar e principalmente experimentar novas perspectivas em torno do bem-estar e suas múltiplas percepções. O encontro buscou proporcionar a possibilidade de um mundo mais perto de nós mesmos, ainda por construir.
“Nós queremos uma economia do crescimento. Do crescimento do Bem-Estar”foi uma das inúmeras mensagens disseminadas pelo Fórum que buscava dar espaço para uma narrativa não apenas econômica da vida em sociedade. O propósito foi buscar respostas para encontrar bem-estar e qualidade de vida em tempos tão turbulentos. O objetivo era despertar a consciência das pessoas e impactar e influenciar organizações. Segundo a curadora de conteúdo do projeto, a argentina residente no Brasil Elena Crescia, organizadora e curadora dos eventos TEDxSãoPaulo, os resultados são intangíveis e futuros.
“Foi como lançar uma pedra num lago, e nem podemos imaginar todas as repercussões do evento terá nos participantes, nas organizações e nas comunidades que fizeram parte deste encontro memorável”
A participação foi diversa e contou com líderes de organizações dos cinco continentes. Entre artistas, neurologistas, cientistas, filantropos e lideranças políticas entre palestrantes e convidados, o fórum simbolizou o desejo de mudança pós pandemia. Um novo normal repleto da cultura do afeto e capaz de transformar mentes adoecidas por um período tão difícil para todos. A arte teve papel fundamental no encontro. Intervenções artísticas ocorriam por toda a cidade, dentro e fora dos locais de debate. Durante o evento, houve ainda uma mensagem especial envida em carta por Dalai Lama, lida para o público:
“Há um grande e crescente desejo de mudança no mundo: mudança que inaugura um compromisso renovado com os valores éticos e espirituais.Tal mudança envolve a defesa dos direitos humanos e da dignidade humana, bem como da responsabilidade humana”
O Fórum trouxe mensagens inequívocas. É preciso ter a consciência que o mundo passa por uma transformação e é urgente imaginar outras realidades. Mudanças que tragam mais bem-estar para os indivíduos e principalmente um bem-estar coletivo e acessível a todos. A metamorfose é pessoal mas o ganho será coletivo e compartilhado. O planeta e os seres vivos buscam bem-estar e cura.
“O passado não pode ser alterado, mas o futuro ainda pode ser repensado” foi outra mensagem entre palestras, intervenções e oficinas em Bilbao. A visão da mudança na sociedade será um resultado do esforço coletivo desses dias e um ensaio para fazer a humanidade ter mais compaixão de si própria e viver em harmonia com o ambiente. Essa luta também se dá pela criatividade e a imaginação que nutre a mente e o espírito rumo a uma nova realidade. A esperança estava no desejo do fórum: “A resposta deve ser o amor para qualquer pergunta que seja feita. Vamos pregar a revolução do amor”. Essas e outras mensagens foram deixados como legado do Fórum:
“Vamos dar poder uns aos outros, não uns sobre os outros” (Raino Bakshi)
“O bem Estar é sobre o processo, não sobre o resultado” (Yazmani Arboleda)
“Devemos criar algoritmos para igualdade de oportunidades” (Sennay Ghebreab)
“A paz é o lugar de onde podemos servir e refletir” (Reggie Hubbard)
A visão da conferencista brasileira, a psicóloga e Psicoterapeuta, Cris Ferraz Prade, traz um resumo de importância de olhar para dentro para enxergar o outro. A fundadora da Casa do Cuidar e criadora do Vital Kompaz, trouxe para o Fórum a importância do cuidar para alcançar o bem-estar:
“A humanidade existe porque alguém cuida. O cuidar compassivo é a base da nossa existência é o que nos conecta em nosso melhor. Estar no mundo de forma compassiva é uma atitude que favorece nosso mundo interno e externo. Ao olhar para dentro damos atenção ao nosso mundo interno, damos atenção para a nossa Bússola Vital e assim navegamos na vida mais cientes de quem somos, o que desejamos, e para onde queremos seguir, bem como mais cientes da existência do outro, das durezas da vida e das belezas também”.
Para impactar positivamente o mundo ao nosso redor, precisamos estar bem conosco mesmo, com os outros e com o meio em que habitamos. O bem-estar é reflexo de pensamento, emoções e da história que vivenciamos. A percepção da mente advém de um complexo – e ainda não completamente compreendido – fenômeno social, psicológico e biológico de nosso cérebro.
Independente do emaranhado circuito de sinapses que formam suas crenças ou ideologias, todos buscam bem-estar. Não se trata de auto ajuda, abraçar árvores ou abdicar da vida urbana. Trata de de compreender sua existência e se conectar com o mundo, suas belezas e problemas. Vale a pena ir além da superfície e o evento Wellbeing quer te fazer pensar de outra maneira. Pensar o impacto socioambiental a partir do bem-estar, da espiritualidade, da inclusão, da ética e do amor podem trazer mais resultados e impactos para as próximas gerações do que soluções de mercado.
A natureza fundamental da realidade na concepção buddhista é algo que poderíamos chamar de cossurgimento dependente. De uma forma bem simples, tudo que existe só existe a partir de um grande número de outras coisas. E essas outras coisas, por sua vez, surgem também de outras coisas, de tal modo que a existência de uma única coisa depende de fato de uma infinitude de outras.
Quando penso sobre como eu posso viver bem, provavelmente centro minha perspectiva em torno de mim mesmo e das necessidades de meu eu. O que ‘eu’ preciso para me sentir feliz, satisfeito, realizado. Parto de uma ideia – errônea – de que eu sou eu, sou um ser isolado, diferente dos outros, independente do mundo ‘lá fora’, o qual, muito frequentemente, está em oposição aos meus interesses pessoais. O mundo ‘lá fora’, com tudo o que ele contém, deve ser conquistado, submetido à minha vontade, e no final do processo serei reconhecido como um ‘vitorioso’. Um pensamento parcial é um pensamento partido, e só pode levar a resultados partidos. Quanto mais penso exclusivamente em mim, mais sublinho a ideia de que posso resolver meus problemas e angústias exclusivamente por mim mesmo e em mim mesmo.
‘Viver bem’ exige um pensamento mais integral, um pensamento inteiro. De um lado, é preciso compreender que minhas ações interferem, positiva ou negativamente, no mundo ao meu redor. Minha busca por viver bem, se destacada de minha influência sobre ‘os outros’, não acabará bem. Quem prejudica, abusa, rouba e agride altera aquele conjunto de coisas das quais minha própria existência enquanto indivíduo depende. Assim, o outro lado da minha influência sobre o outro é que a influência do ‘mundo lá fora’ deve ser seriamente considerada. Não há busca por felicidade individual que não passe pela melhoria da felicidade do outro, e a felicidade do mundo ao redor efetivamente altera as influências sobre minha existência individual. Eu e outro, indivíduo e mundo, não são partes autônomas em oposição, mas elementos de um mesmo fluxo – complexo, e ao mesmo tempo belo e terrível, dependendo de como eles se relacionam entre si.
É nesse sentido que o buddhismo tem um olhar para dentro pela meditação e outro olhar para fora pelo desenvolvimento de uma consciência efetiva e pragmática voltado ao benefício do outro.
Meditação e reflexão: A meditação é uma das ferramentas mais poderosas que o buddhismo traz. A busca pelo equilíbrio, ou a diminuição da ansiedade, passam por um conhecimento da própria mente e das maneiras como ela reage nas diversas circunstâncias. Dificilmente alguém operaria uma máquina complexa, ou se arriscaria a fazer uma operação cirúrgica em alguém, se não estudasse para conhecer muito bem tudo aquilo e treinasse nas formas de se lidar com seus elementos. No entanto, facilmente nos jogamos pela vida sem qualquer consciência da importância de conhecermos a nós mesmos e como funcionamos mental e emocionalmente. Essa é a função da meditação. Ela é uma fonte de conhecimento, reflexão e treinamento.
Benefício do outro: Em vez de ver o mundo ‘lá fora’ como em oposição a mim, posso vê-lo como um colaborador. Senhores de engenho é que dominam e ‘vencem’ seus escravos. Infelizmente continuamos com essa mentalidade na vida. Falamos de ‘vencer na vida’, criando com isso um mundo selvagem, cheio de competidores, e que deve ser submetido e domado. A visão buddhista é bem diferente da retórica dos ‘conquistadores’. Na linguagem da colaboração quatro qualidades essenciais são propostas: a. por meio de uma visão fraterna, buscamos os elementos comuns que podem apoiar ‘eu e outro’; b. por meio da compaixão buscamos ver o sofrimento do mundo e compreender como usar dos recursos que temos para minorar as suas dificuldades; c. os sucessos e realizações dos outros, em vez de serem objetos de inveja e ambição, passam a ser motivos de alegria; e d. por meio da equanimidade buscamos nos manter firmes e centrados diante das adversidades da vida, bem como apoiar o mundo ao redor de forma equilibrada e não-violenta.
Assim agindo – cuidando de si mesmo e cuidando do outro – conscientes de nossas ações no mundo e atentos às suas influências em nós, é que poderíamos realmente falar que um viver bem está sendo promovido.
Ricardo Sasaki (Dhammacariya Dhanapala) é o Diretor-Presidente do Centro de Estudos Buddhistas Nalanda, através do qual ministra cursos, workshops e retiros de Meditação, Ensinamentos Buddhistas e Religiões Comparadas, além do trabalho de escrita e tradução, com livros e artigos publicados no Brasil e no Exterior.
Anna Luisa Frimm é psicológa e atende em São Paulo
1) O Brasil é o país com mais pessoas que apresentam sintomas de ansiedade no mundo. Como isso se reflete no consultório?
Sim, e se reflete no aumento do número de pessoas que buscam a terapia para cuidar de uma ansiedade excessiva que as fazem sofrer, e chega a prejudicar diversas áreas da vida. É diferente de se sentir ansioso eventualmente. Essas pessoas vivem ansiosas, muitas já foram diagnosticadas com a síndrome do Burnout, transtorno do Pânico, fobia social, transtorno de ansiedade generalizada (TAG), entre outros diagnósticos. Todos esses distúrbios/transtornos emocionais em que a ansiedade se faz presente. Acredito que essa ansiedade excessiva que pode levar ao adoecimento emocional está ligada a condição da vida moderna, com um ritmo intenso, estressante, muitas exigências, demandas e alta performance. Ao mesmo tempo, há um movimento de autocuidado, pessoas preocupadas em buscar e desfrutar de uma melhor qualidade de vida.
2) E como isso afeta as mulheres? Segundo a OMS, elas sofrem mais que os homens.
A mulher, infelizmente na nossa cultura, ainda se encontra em desvantagem em relação ao homem. É comum elas se queixarem de uma sobrecarga em relação a organização da vida familiar. Assim, vivem estressadas, ansiosas, relatam dificuldades para “desligar”, curtir o momento presente, estão sempre com pressa, procurando conciliar os afazeres da vida moderna, criação dos filhos, organização da casa e trabalho. A mensagem implícita é: ‘trabalhem muito, sejam excelentes profissionais, mães presentes, esposas carinhosas e não esqueçam de cuidar de si mesmas’. Os transtornos de ansiedade são, de certa forma, um reflexo dos nossos tempos caracterizado pelo ‘não consigo desligar, relaxar, não tenho tempo para nada’.
3) A partir da experiência do consultório, por que você acha que as pessoas têm dificuldades para mudar comportamentos ou atitudes?
Isso acontece porque em alguns casos o problema não diz respeito só a questões pessoais. Também pode ser um problema da nossa sociedade que valoriza o alto rendimento, um ritmo de vida intenso, múltiplas funções e atividades. Queremos pertencer, fazer parte, atingir metas, mas por vezes, aceleramos demais, queimamos etapas e adoecemos. Em terapia temos a oportunidade de entender que o problema pode não atingir só você, pode ser algo muito maior. Esse é o primeiro passo para que a mudança de comportamento verdadeiramente aconteça.
4) Por que o processo de escuta da terapia pode ser algo importante para as pessoas no mundo que vivemos?
Porque quando a pessoa sente que alguém a escuta – e muitas pessoas têm uma necessidade enorme de falar–, elas vivem uma experiência de acolhimento, se sentem valorizadas e respeitadas em sua própria singularidade, organizam os pensamentos para falar, refletem sobre sua própria história, dividem sensações e emoções, fazem descobertas, aprendem e crescem.
5) Qual seria sua mensagem para quem está buscando melhorar a qualidade de vida, ter um vida mais equilibrada e em paz consigo?
Descubra como você deseja viver a sua própria vida. Conheça melhor sua própria história. Entenda a maneira que você funciona, viva de forma coerente aquilo que acredita e encontre vontade de viver. A terapia é uma excelente ferramenta nesse sentido. Como dizia Contardo Calligaris: ‘nenhuma terapia dinâmica pode alterar os fatos de uma vida, mas pode, isso sim, alterar a narrativa dos fatos’.
Quadro de Pedro Mota - Prosperidade, felicidade em tudo - na exposição de Rosário Bispo no Itaú Cultural /SP. A obra é composta por 128 desenhos e giz de cera sobre sulfite (PCRJ)
Estar bem consigo mesmo pode ser algo simples de falar, mas complexo de alcançar. A dificuldade pode começar nas palavras. Todos queremos Viver Bem ou Bem Viver? É a mesma coisa? Não. Existe aqui uma diferença que vai muito além da ordem gramatical e da sintaxe da frase. Há um conceito por trás do Bem Viver e descobrir melhor o significado e as diferenças podem te levar para caminhos de felicidade bem distintos. A tão desejada plenitude pode depender do que a sua mente buscar. E é bom ficar atento, pois sua cabeça pode te trapacear.
Há quem prefira escolher uma carreira com propósito como a chave da plenitude e da satisfação pessoal. Ou ainda, há quem escolha a maternidade, uma casa na montanha e ter um cachorro, como ideais para ser feliz. O dinheiro, por exemplo, pode representar satisfação, conforto, poder e até solidão. E para complicar a equação do bem-estar e da felicidade, o sonho pode mudar a cada fase da vida e de acordo com as experiências e o ambiente ao redor. Como diz o ditado, a única certeza da vida é que ela muda. Logo, o conceito de bem-estar também pode ter mudado na sua mente e provocado transformações dentro de você. E isso pode ser um bom sinal.
Para compreender o Bem Viver é preciso olhar para dentro e perceber o que está fora. Isso te levará a entender melhor o conceito filosófico e exercitá-lo, por uma vida mais consciente e conectada consigo mesmo, com os outros e com o meio ambiente em que vive. A diferença fundamental do lugar em que o “Bem” completa a frase está aqui. O Bem Viver está dentro de você e o Viver Bem está no externo. Você pode trabalhar em uma ONG, seguir páginas inspiracionais nas redes sociais, viajar para lugares incríveis, frequentar a academia, se alimentar de maneira saudável, plantar uma árvore, ter um filho e até escrever um livro. E tudo isso, sem dúvida, te proporcionará momentos de felicidade. Mas também podem trazer síndrome de burnout, síndrome do pânico, depressão e crises de ansiedade. Como? A sua mente pode explicar.
Para entender melhor, enxergue as mulheres
O mundo presenciou um grande trauma coletivo com a pandemia. Além das milhares de vidas perdidas, as pessoas adoeceram psicologicamente e a saúde mental passou a ser um assunto relevante na sociedade. Segundo a OMS, o Brasil é o país que tem mais pessoas com sintomas de ansiedade no mundo e, em especial, as mulheres. Esses transtornos são potencialmente maiores para elas em razão das desigualdades de gênero que transpassam nossa cultura e sociedade. Muitas mulheres buscam tratamento nos consultórios de terapia, pelos sofrimentos enfrentados no dia a dia, como relata a psicológa Anna Luisa Frimm.
“A mulher, infelizmente na nossa cultura, ainda se encontra em desvantagem em relação ao homem. É comum elas se queixarem de uma sobrecarga em relação a organização da vida familiar. Assim, vivem estressadas, ansiosas, relatam dificuldades para “desligar”, curtir o momento presente. estão sempre com pressa, procurando conciliar os afazeres da vida moderna, criação dos filhos, organização da casa, e o trabalho.”
Por isso, uma simples viagem para desfrutrar com a família pode ser feliz e ao mesmo tempo estressante. Por que? Há possibilidade de trazer bons momentos, mas também um gatilho de burnout para elas. Pode significar mais trabalho para preparar as atividades, responsabilidades de zelar pelo conforto e segurança da família e, claro mais ansiedade. O julgamento sobre o cuidado dos pequenos, por exemplo, sempre recai mais sobre elas. Afinal, é papel da mãe cuidar e do pai prover, não? Não, mas a maioria acredita que sim e essa sobrecarga da maternidade sobre as mulheres acaba gerando culpa e preocupação. A pandemia desnudou as desigualdades fora e também dentro de casa. Muitos conflitos, separações e feminicídios vieram à tona na medida que a cultura patriarcal cobrou ainda mais os papéis femininos. “Os transtornos de ansiedade são de certa forma, um reflexo de nossos tempos. A mensagem implícita é: trabalhe muito, seja excelente profissional, mãe presente, esposa carinhosa e não esqueçam de cuidar de si mesma”, afirma Anna.
Por essa razão, uma das formas de entender a diferença entre o Bem Viver e o Viver Bem acontece por compreender a desigualdade de gênero entre nós.
O Viver Bem não resolve o problema. Viver Bem pode estar na academia, no consumo, no trabalho. A busca por Viver Bem apenas alivia as tensões das mulheres. É preciso buscar um entendimento mais profundo sobre os fatores determinantes do sofrimento ou da má qualidade de vida delas. Não é algo que elas devam resolver sozinhas. Todos devem participar da solução, incluindo os homens que, querendo ou não, também herdaram essa dívida e são obrigados a enfrentar o problema, seja compreendendo o machismo, bem como desconstruindo-o. Isso é um dos preceitos do Bem Viver. Entender que todos têm os mesmos direitos – de fato – e compreender que os problemas e as soluções são coletivas, não individuais. Ou a sociedade busca fomentar a igualdade ou as minorias estão fadadas a conviver com a saúde mental abalada. É disso que se trata.
É uma ilusão confortável imaginar que a saúde mental é algo que depende somente de cada um. Uma teoria mais crítica da psicologia defende justamente que é a forma e o modelo como uma sociedade está estruturada, o grande responsável pelos males que vivemos. Assim como no caso das mulheres que sofrem mais, isso não se dá em razão de questões apenas biológicas, neurológicas, hormonais ou nutricionais. Sim, comer alimentos ricos em triptofano, como castanhas, queijos e ovos ajudam a liberar endorfina e o bem-estar, mas o que fazemos com os valores culturais cultivados entre nós? Não seria o patriarcado, por exemplo, e não o período menstrual, um importante causador da má qualidade de vida delas?
Sabemos que não basta respirar fundo para se acalmar e achar que o problema dos males do mundo são de ordem individual. São de todos. O mundo e o sistema até vão oferecer castanhas, ansiolíticos e opióides para atenuar as dores e as angústias causadas pela forma que vivemos, mas não tratarão a causa. Ou seja, o Viver Bem pode ser a solução para o sistema, mas talvez não para você. Muitos psicológos associam diversos transtornos mentais como bipolaridade ou outras novas patologias mentais como decorrência do próprio capitalismo. “Pobreza, desigualdade, estar sujeito ao racismo, ao sexismo, à demissão e à uma cultura competitiva, aumentam a probabilidade de sofrimento mental”, segundo Jay Watts. E Mark Fisher complementa dizendo que “o capitalismo alimenta e reproduz as oscilações de humor da população em um nível nunca antes visto em outro sistema social”. Mais uma vez, a pandemia não é causa. Apenas mostrou o nosso sistema gerador de desigualdade entre ricos e pobres e, portanto de ansiedade e infelicidade entre nós.
Ou seja, se você achou que bastava entender que não alcançaria a felicidade comprando um carro novo, saiba que o buraco é mais embaixo. É preciso outro grau de consciência para entender e buscar a paz espiritual e ter qualidade de vida. O Bem Viver é buscar essa consciência a partir de si, procurando compreender que fazemos parte de um todo, incluindo outros seres humanos e não humanos habitantes do planeta chamado Terra. Entendeu? Bem Viver é simples mas requer profundidade filosófica e espiritual. Um exercício da consciência que cobra a fatura sobre você no mundo.
“O Bem Viver – enquanto filosofia de vida – é um projeto libertador e tolerante. Sem preconceitos nem dogmas”. – Alberto Acosta
Mulher segura a Wiphala, a bandeira dos povos andinos
Não adianta largar tudo e viver com a roupa do corpo ou mudar para a Índia. O mundo globalizado é também o mundo desigual. O adoecimento mental, a crise climática, o racismo, a fome, a desigualdade social e os outros problemas sociais, também são dilemas éticos e políticos que influenciam o estado de espírito, aqui e em qualquer lugar. A ciência já comprovou que nós, os humanos, ao vermos nossos semelhantes em situações piores na qual nos encontramos, também sofremos. Há exceções, mas ser mal não é a regra. (O livro Humanidade de Rutger Bregman fala sobre isso). O que ocorre é que, em algumas situações, a mente normaliza o sofrimento para não sofrer intensamente. A mente prefere não ver alguém dormindo no frio na rua a acreditar no fato.
Mas, se você busca ampliar a consciência em busca de mais qualidade de vida, irá inevitavelmente se deparar com o sofrimento. Nesse momento, pode perceber como a fuga em busca do Viver Bem pode fazer mal para todos. O Viver Bem pode ser o mal-estar da civilização dessa era na medida que não nos deixa compreender o que precisamos como sociedade ser, para que todos tenham bem-estar. Sim, nossa mente foi educada e de certa maneira nos trapaceou. Ainda dá tempo de Bem Viver. Mais cedo ou mais tarde, praticaremos isso.
A busca coletiva do cada um por si
Se você fizer uma busca no Google, a palavra Bem Viver, o buscador apresentará vários apartamentos à venda. Não se engane, aqui é mais uma vez o sistema vendendo Viver Bem como Bem Viver para confundir o seu cérebro. Não caia nessa. É preciso pesquisar mais para entender o conceito e filosofia de vida do Bem Viver, ou Teko Porã, termo em Guarani que significa, literalmente, o “belo caminho”, do qual a palavra é originária. (O livro Bem Viver de Alberto Acosta aprofunda o assunto e a filosofia). É um modo de ver e viver dos indígenas da América andina que defende, que todos estamos conectados e devemos buscar harmonia com a natureza ao redor. É uma cosmovisão que se opõe ao desenvolvimento que destrói direitos humanos e direitos da natureza. Uma ideia que está dentro de todos nós, e que encontra consonância com pensamentos de outras culturas e pensamentos, mas que foi esquecida.
É possível enxergar esses preceitos no budismo e nas palavras de Dalai Lama: “É preciso sentir-se responsável pelos indivíduos, comunidades e povos que compõem a família humana como um todo”. Ou ainda nas frases de um dos seres humanos mais famosos do mundo, Jesus Cristo: “Amai-vos uns aos outros”. O Bem Viver é um modo e uma forma enxergar a si, os outros e a natureza. Extrapola ideologias. É uma maneira de encontrar soluções socioambientais para problemas reais. Os negócios de impacto que não tem solidariedade e não resolvem dilemas éticos dentro do seu modelo de negócio são, nada mais, que soluções de mercado. Existe um desejo de mudança dentro do capitalismo, para que ele se torne mais consciente, igualitário ou menos desigual, mas parece que a vontade de mudança do mundo das pessoas não vai somente nessa direção. Vai em uma direção mais profunda e de autoconhecimento que gerará uma mudança coletiva planetária.
Existem teorias que indicam que se 30% da população buscar alcançar uma consciência genuína, o mundo é capaz de mudar. Ou seja, se 3 em cada 10 pessoas não se deixar enganar por mentes traiçoeiras do Viver Bem, conseguimos mudar o mundo. Segundo Dalai Lama: “Há um grande e crescente desejo de mudança no mundo: mudança que inaugura um compromisso renovado com os valores éticos e espirituais”. Será que o capitalismo tem consciência disso? Nós criamos o sistema que vivemos e nós que também podemos reformá-lo ou substitui-lo. Pode não ser simples e cheio de dificuldades, mas o primeiro passo é a consciência de cada um.
Há diversas formas de buscar essa consciência e o autoconhecimento é um caminho. Passa pelo alimento que comemos, pela roupa que vestimos, pela forma que investimos ou compramos, e também pela forma com enxergamos o mundo. É fundamental cada um, dentro da diversidade que se encontra, procurar uma bússola interna capaz de conseguir a autocompaixão, compreender-se a si mesmo e ficar em paz. Segundo a psicoterapeuta Cris Ferraz Prade, “Estar no mundo de forma compassiva é uma atitude que favorece nosso mundo interno e externo. Nos ajuda a construir relações afetivas autênticas e respeitosas, favorece pertencimento e segurança, promove experiências com sentido e propósito”. Somos seres complexos movidos por desejos, impulsos e passados.
Se você quer mudar o mundo e transformá-lo em um lugar mais justo para todos, é preciso Bem Viver consigo mesmo. Compreender para ter consciência e agir na medida da humildade que cabe a cada um de nós. Mas não se iluda. O mundo está mudando e a mudança é profunda. Somos seres intensos e complexos. A solução está na busca da realidade no meio do caos. De respostas com mais afeto e menos razão. Comece a amassar seu interior, dominar sua mente e abrir-se para o caminho sem volta, sem falsas e simples verdades. Quem bem viver, verá!
Precisamos ter uma relação mais harmônica com o ambiente para nossa salvação aqui no planeta terra. O Projeto Amazônia de Pé se conecta com isso e tem o objetivo de combater a crise climática salvando a Amazônia. Explico: a gente quer fazer um projeto de lei de iniciativa popular que vai destinar florestas públicas para territórios indígenas, quilombolas ou unidades de conservação. Vou citar 3 pontos principais por que precisamos fazer esse projeto acontecer. Primeiro,a crise climática é o maior desafio da nossa geração. Estamos vivendo uma emergência climática que, de acordo com a ONU, temos até 2030 para manter a temperatura da Terra. A floresta é um grande regulador que protege a biodiversidade e atua no sequestro de carbono e manter a floresta Amazônica em pé significa garantir que vidas sejam cuidadas, sejam indígenas ou animais. Um segundo ponto, é que nosso projeto é uma Plip (projeto de lei de iniciativa popular), uma iniciativa vinda da própria sociedade. Buscamos que a transformação ocorra de baixo para cima, ou seja, as pessoas pressionando governo, poder público, para cuidar da nossa floresta, para cuidar da nossa biodiversidade e das diferentes vidas que ali residem. Quando a gente pensa nessa transformação, vinda de baixo, a gente pensa em uma ação efetiva. Terceiro, é um projeto que visa mobilizar toda a sociedade brasileira. A gente precisa de 1% do eleitorado ou 1.5 milhões de assinaturas.Olhar para o Brasil a partir desse lugar de união e de ajuda compartilhada faz com que a gente crie ferramentas para que no futuro todo esse desenvolvimento egóico e baseado no eu, seja deixado de lado. Vale lembrar que a gente vive em uma comunidade, que a gente está ao redor de pessoas, e que precisamos cuidar dessas relações. Esse sentimento de colaboração é essencial quando a gente pensa em futuro.
O poder do ativismo é suficiente para transformar?
Eu acredito que os ativistas são agentes de transformação. São eles que aceleram uma mudança que precisa acontecer na sociedade. Quando a gente olha para essas grandes mudanças que aconteceram, não foram por que um grande governante fez. Aconteceu porque teve pressão dos ativistas, da base. São pessoas que tem uma visão sistêmica e conseguem enxergar mudanças que precisam acontecer. Eu acredito muito nesse poder. O de chacoalhar o governo e as empresas e, mostrar que tem algo urgente e emergente precisando nascer.E que, se os representantes desses poderes não viabilizarem, a gente vai pressionar, mobilizar e articular para fazer acontecer. E isso tem muito a ver com o que me move a transformar o Brasil hoje. Eu tenho um amor muito profundo por essa nação, sabe?Eu acredito que, sim, a gente pode ser uma potência. Infelizmente a gente vive num país que está adoecido pela corrupção e pelo conservadorismo de extrema direita, mas eu também acho que a gente pode entender como esse sistema foi construído e como ele opera para poder transformá-lo.Eu não quero aceitar a realidade imposta. Eu vou me aprofundar no tema, desafiar o status quo e mobilizar minha galera para construir algo que seja de fato inclusivo, colaborativo e sustentável.
Cristine, Vanda e Kerexú são mulheres indígenas que vivem em lugares diferentes, mas com a mesma causa na mente e no coração. Todas sentiram a força do impacto negativo dos não indígenas em suas aldeias e, juntas, decidiram contra-atacar. Inspiradas na ancestralidade dos antepassados que resiste há séculos no Brasil, as três guerreiras se preparam para ocupar outros territórios. O poder vem da palavra e a força de suas etnias, os Maxacali, os Witoto e os Mbya Guarani. São três mulheres e seus povos, na luta contra dois alvos: o pensamento do homem branco e as instituições. Elas querem ocupar o debate público, Brasília e outros espaços de poder. E, só vão parar quando os seus povos estiverem protegidos do impacto mortal do modo de vida das grandes cidades.
Com a palavra, a sabedoria e a força das guerreiras: K
Por que os povos originários devem ocupar espaços de poder dentro das instituições?
Os povos originários detêm um conhecimento muito sagrado. Sabemos o que é ser sustentável e como se relacionar com todas as formas de vida de uma maneira respeitosa.O conhecimento dos diversos povos que resistem no nosso país está amparado por uma memória ancestral.É essa memória e esses conhecimentos que são transmitidos para as futuras gerações. É essa ancestralidade que já ocupa os espaços de poder. Nesses últimos anos temos assistido muitos povos indígenas, de diversas etnias, ocupando espaços em universidades, por exemplo. Sejam como alunos, e também como professores. Temos indígenas doutores que estão assumindo cargos importantes e assim transmitindo nosso conhecimento e sabedoria. Significa que os professores indígenas estão formando novos professores. Serão médicos e advogados, e há uma ampla atuação dos povos indígenas dentro das instituições. Nos museus fazendo curadoria e produzindo arte indígena contemporânea na Bienal, além de produções literárias e de cinema.Tudo isso traz a possibilidade da sociedade brasileira passar a respeitar. Porque muito do desconhecimento gera o preconceito.E se até hoje existe o racismo e o preconceito, é porque muitos desconhecem o passado. A escola não está dando conta de ensinar a verdadeira história dos povos indígenas e toda a riqueza cultural, espiritual, política que tem nessa ancestralidade transmitida em nossa memória.Eu vejo que a contribuição dos povos indígenas para o futuro da sociedade é fundamental. São povos de resistência que vem dialogando com todas as formas de vida, não somente as humanas. Por isso e, cada vez mais,a ocupação dos povos indígenas nos mais diversos lugares dentro das instituições é uma contribuição para uma sociedade mais justa, mais respeitosa e mais equilibrada.
Cristine Takuá é do povo Maxakali, professora e artesã, formada em Filosofia pela UNESP. Ministra aulas de Filosofia, Sociologia, História e Geografia na EE Indígena Txeru Ba’e Kua-I. É membro fundadora do Fórum de Articulação dos Professores Indígenas do Estado de São Paulo (Fapisp), representante no Núcleo de Educação Indígena da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, fundadora e conselheira do Instituto Maracá. Cristine é proveniente da terra indígena Rio Silveira, localizada na divisa dos municípios de Bertioga e São Sebastião.
Como a visão de mundo dos povos originários pode fazer parte da solução para todos?
Nós não temos somente uma visão de mundo. Nós temos uma vivência relacionada com a natureza que a sociedade não indígena não compartilha mais.A gente acredita nesse modo de vida e se enxerga como natureza, fazendo parte da mãe terra. E acreditamos que é esse modo de vida com milhares de anos, que tem garantido a própria existência do nosso planeta.Por isso é importante trazer esses povos para o centro da discussão e da construção de políticas públicas. Historicamente, os povos indígenas ficaram ausentes dos processos de decisão ou das eleições. Sempre fomos marginalizados pelo Estado, uma vez que éramos tutelados e considerados incapazes de gerirmos nossos territórios,de conduzirmos nossas culturas, de fazer um controle social dos nossos povos. Hoje, a partir do momento que esses povos têm se organizado, temos compreendido sobre a necessidade de ocupar esses espaços de poder para tentar fazer que as politicas públicas já existentes sejam efetivadas nos nossos territórios. Mas não somente isso.A gente quer contribuir contra o aquecimento global e as mudanças climáticas que tem impactado a vida, o planeta e os animais. A gente sente isso na pele. Os nossos velhos tem nos dito sobre esses desequilíbrios causados por ações humanas como o desmatamento. Há o consumo desordenado e uma produção que não para e que polui. Esse acúmulo de riquezas tem gerado muitos problemas e para solucionar isso nós temos saberes ancestrais e uma tecnologia social que necessita ser compartilhada com quem desconhece isso.Precisamos olhar para esses conhecimentos como algo capaz de garantir a existência não só de nossos povos e não somente da floresta. Nossa luta se dá nessa direção. De garantir a vida de todos nesse planeta.
Vanda Ortega Witoto é indígena da etnia Witoto, funcionária pública e técnica de enfermagem no Amazonas. Ela foi a primeira indígena vacinada no Estado e fez ampla campanha de mobilização pela vacinação no bairro do Parque dos Tribos, onde vive, em Manaus. Pré-candidata a Deputada Federal pela REDE por Amazonas.
Por que os povos originários devem se candidatar nas eleições em 2022?
Decidimos ocupar esses espaços depois de uma avaliação da conjuntura política atual e do ataque aos direitos dos povos originários. Esse momento de reflexão nos trouxe isso. Temos uma lacuna na demarcação de terras e uma brecha aberta para que governos entrem nesses espaços e ataquem os povos indígenas. Desde 2018 já houve um despertar com candidaturas que se apresentaram com força para ocupar esses espaços. Tivemos a eleição da Joenia Wapichana que vem fazendo uma defesa fundamental por direitos indígenas, demarcações das terras e a questão ambiental. Agora, em 2022, a gente se apresenta novamente para ocupar esses espaços.Percebemos que não basta existir o apoio de pessoas se não demarcarmos as terras.Para isso, precisamos ter alguém nosso que faça isso.Precisa da gente lá dentro do Congresso Nacional e em outras esferas da política brasileira.Nossa atuação e proposta é reforçar isso. Trouxemos isso no Acampamento Terra Livre em abril com o tema Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política. A ideia é não parar e ocupar. Precisasmos retomar os processos que estão paralisados na Funai ou no Ministério da Justiça.Por isso, candidaturas indígenas precisam ocupar, participar e decidir.Como candidata, estou levando esse propósito dos povos para dentro, para fortalecer políticas públicas como educação e saúde indígena. Hoje, tem gente que ocupa esses lugares e é contrária a tudo isso. Precisamos paralisar os projetos de leis e emendas constitucionais que são criados com intúito de exterminar os povos.Precisamos de uma Funai terrivelmente indígena para garantir a implementação de políticas de promoção de uma economia indígena e um modelo de produção etnosustentável e agroflorestal.
Kerexu Yxapyry é uma liderança indígena da etnia Mbya Guarani. É coordenadora da comissão Guarani Yvyryupa e coordenadora Executiva da APIB. Pré-candidata a Deputada Federal por Santa Catarina pelo Psol.
A abertura para o turismo em terra indígena é dos Yanomamis ou é uma reparação?
Os Yanomamis não endossaram o plano de turismo Yaripo em seu território. Eles são protagonistas na elaboração desse plano. Eles pediram a aprovação dos órgãos como ICMBIO e FUNAI. Foram eles que endossaram um plano estratégico que tem como objetivo a geração de renda, mas não somente isso. Também promove a proteção territorial na medida que é uma alternativa ao garimpo. Na medida que o turismo sustentável substitui o garimpo e isso também é proteger o território. Não vejo como ação de reparação dos brancos por que é uma ação dos Yanomami. É um protagonismo que revela muito mais do que uma intenção ou desejo, revela também uma generosidade de abrir o seu território para os brancos. Esse é um caso onde os Yanomamis estão convidando e dando essa oportunidade de abrir suas terras para serem visitadas. Eles não aceitaram e sim fizeram essa proposta, são os agentes dessa atividade. É uma primeira startup de turismo indígena onde eles estão sendo os empreendedores e promotores de uma ação que tem como vocação econômica duas principais riquezas: os povos indígenas e a floresta amazônica. E aqui há um impacto socioambiental importante que vai além da atividade turística. Os serviços socioambientais que a floresta desses povos prestam para toda a humanidade do planeta.
E como enxerga o choque cultural entre turistas e os Yanomamis?
O choque cultural entre o Yanomami e os não Yanomami já existe e infelizmente da maneira mais desregrada possível. Principalmente quando a gente fala de invasão de território por garimpeiros, pescadores, caçadores ou nessa relação preconceituosa que existe com os militares, que estão no pelotão de fronteira na região. O preconceito ainda existe quando os Yanomamis estão na cidade. Em contraponto, a vantagem que eu vejo nessa atividade de turismo é por ela ser uma atividade de protagonismo dos Yanomamis, onde eles podem dizer como eles querem ou não querem que seja. O que eles permitem aos visitantes e o que eles não permitem. É claro, vai ter sempre uma pressão e uma demanda que é crescente e os Yanomamis vão ter que saber se preparar para reagir a isso. Ao mesmo tempo, pode parecer desejável para os Yanomamis que a demanda cresça porque vai gerar mais renda, mas eles tem que estar conscientes das limitações e das violências que podem vir com isso. Por que o turismo não é bom nem ruim, ele pode ser benéfico, mas ele pode ser maléfico. Não acho que a demanda por serviços na trilha irá descaracterizar o projeto por que eles mantém o protagonismo Yanomami. Existe o dinamismo próprio dessa atividade como qualquer outra e acontecerão mudanças, se eles continuarem daqui 10 anos, e vão fazer de maneira diferente e espero que seja para melhor.
Existe dinheiro para os povos originários e a Amazônia?
Infelizmente, os agentes do mercado estão preocupados em dar um “check” no ESG e na Amazônia. É um tema relevante mais do que efetivamente uma questão ambiental. Eu não vejo eles, salvo uma ou outra exceção, protegendo os povos originários. Nas minhas conversas com eles nunca vi verdade nisso. Eventualmente, um ou outro tem um cunho interessante que ajuda, mas eu não vejo esse desejo genuíno do que o ESG deve ser. Na minha opinião, não há desejo ou uma preocupação genuína com os povos originários e com a preservação da Amazônia. Os critérios de investimentos são outros. Eles analisam como é a empresa e se tem algo que a empresa já cumpre. Dentro do que a empresa já faz ou que ela mude o mínimo. Via de regra, muitas operações se enquadram em réguas que estão adequadas à elas e não necessariamente às necessidades da sociedade. É mais o que é adequado do que é necessário. A questão humana, os valores humanos não estão em jogo em grande parte dos negócios e, um valor muito forte que não é olhado, que é muito negligenciado, é a questão do S do ESG. Especialmente a questão da desigualdade social. Isso não é olhado de maneira nenhuma. A gente tem que pôr em xeque esse modelo, pois estão tirando a credibilidade do que é sério. Não estão causando nenhum impacto, os problemas continuam cada vez maiores e os caras continuam emitindo título como se estivessem resolvendo alguma coisa.
Será que falta amor e afeto no mercado e no mundo dos investimentos?
O mercado passou a não valorizar os valores internos, que é o que mais importa na vida, e passou a olhar tudo como meio de produção. O que vale mesmo é acumulação de riqueza. Infelizmente essa é a realidade do que acontece. Essa busca desenfreada pela acumulação, acreditando que a vida é um jogo finito onde um ganha e outro perde, traz esse mundo caótico que a gente vive, onde cada vez menos gente tem mais e mais gente tem menos. Se continuarmos com essa sociedade materialista e sem consciência, vai continuar esse caos social e ambiental. Para mim, quando você amplia a consciência não tem outro caminho que não olhar para o próximo. É preciso olhar para as próximas gerações. E quando você tira esse olhar egocêntrico materialista que te deixa infeliz, você sai da bolha. Eu fiz isso. Vendi todo o negócio tradicional da Gaia e quero fazer só coisas de impacto porque é o que faz sentido. O que mais me faz feliz. O que coloca sentido no trabalho e me faz acordar todos os dias. E todo o dinheiro da venda estou revertendo para o impacto. Abrindo mão de um capital muito maior do que eu tenho em prol do impacto. O mercado é formado por várias pessoas tóxicas e materialistas que fomentam essa sociedade cada vez mais desigual. O que falta é amor no coração dessas pessoas. Porque quando você está em paz e deseja o bem para o próximo, não tem como você ser mais ganancioso.